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Hoje é quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Submersa

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Mulher submersa
Foto: Jeremy Bishop/Unsplash

Ouça o áudio de "Submersa", da colunista Giseli Barros:

O choque intenso fazia vibrar cada célula do seu corpo. Por um instante, seu estado era letárgico e as palavras saíam-lhe da boca em respostas curtas. Assim que desligou o telefone, trocou de roupa, enviou algumas mensagens e saiu. Agora, tudo estava terminado. A cabeça flutuava em pensamentos desconexos, enquanto a memória trabalhava em ritmo acelerado. Tentava ouvir o que motorista comentava sobre eventos dispersos da véspera, às vezes, respondia, fingindo participar da palestra. A estrada escura, descoberta pelos faróis, convidava-a para o silêncio. Abriu um pouco a janela para não sufocar.

As paredes opacas combinavam com o chão claro. Como era muito tarde, não havia pessoas transitando por ali. Assim, com esforço, sentindo-se desconfortável, tentava não ouvir o som dos próprios passos. Ao final do corredor, havia uma televisão ligada e a voz da recepcionista era macia, contrastando com a aspereza da noite. O balcão continha um vidro que as separava. Pelo pequeno espaço, entregou-lhe documentos, assinou um papel e seguiu mais uma vez pelo mesmo corredor.

Depois de algumas horas, foi feito o mesmo trajeto de volta, com a estrada ainda escura. O motorista preferiu falar pouco. Ela estava em outro lugar. Não se sabe quanto tempo duraria aquilo. Finalizado o rito, a rotina continuava. Outras histórias aconteciam. O trânsito, o relógio, as tarefas, os encontros alheios. Os outros falavam de perdas e ganhos. Alguém havia sido transferido para outra cidade, outro partia também, enquanto as cadeiras eram ocupadas novamente. A casa vazia. Em alguns momentos, sentia o cheiro do perfume conhecido. Despertava-se, de súbito, para cumprir com a entrega do seu trabalho.

Tudo seguia, como tinha de ser, mesmo que nada saísse do lugar. Não reparava nas linhas do rosto, na textura das mãos. Não reparava nos convites sem resposta, nas viagens não planejadas, nas leituras que não terminavam. As vozes cotidianas pareciam todas iguais. No entanto, talvez pelo acaso, numa manhã improvável, deixou-se ir pelas montanhas, entre semblantes conhecidos, colhendo fragmentos de vida. Impelida pela temperatura das primeiras horas, deixou o corpo ser envolvido pela água gelada. Num átimo, contraiu-se completamente. Corpo, água e alma se entrelaçavam, e a sua essência despertava, ainda que estivesse submersa, aparentemente estática.

De súbito, abriu os olhos e tomou consciência de si. Nadou bruscamente, procurando se aquecer. Retomou a respiração, tranquilizando os músculos. Harmonizou-se com a água. Reparou na luz do sol que incidia na água. Fixando o olhar, enxergava a vida em movimento. Doeu-lhe o peito. Não haveria resgate do que fora partido. A mente continuaria exercendo o papel das lembranças. Viveria as ausências. Ainda sentiria os vazios. Embora, soubesse de tanto, ainda se movia. Ainda estava integrada ao intangível. Sacudiu-se toda, como a criança que descobre um mistério. Deixando o sol acariciá-la, aceitou as cicatrizes para, então, seguir.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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