Contratos
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Ouça o áudio de "Contratos", crônica de Giseli Barros
Às vezes, no meio da noite, a porta abria. No chão sem acabamento, os pés tentavam fazer pouco ruído, mas era possível sentir a fricção dos chinelos que seguiam pesados. Era um cômodo pequeno, com uma cama estreita, uma mesa no canto e uma cômoda. Seguiam longas horas até o amanhecer. Assim que podia, dava início às tarefas e se distraía com as conversas alheias.
Pouco falavam com ela. Vez ou outra, brincava de cantar o próprio nome, bem baixinho, para não esquecer dele. Atendia aos chamados pelos gestos que faziam, pelas ordens dadas, pelos gritos ou empurrões. Chegou ali ainda pequena. Levava uma sacola e uma boneca sem graça, assim como era a sua imagem refletida no pequeno espelho de borda amarela, preso na parede do quarto.
Em sua intimidade, gostava das noites vazias, aquelas em que a porta não rangia. Sentia a cama leve. Abraçava a sua boneca e pensava na mãe. Fazia muito tempo que o abraço não era mais possível. Foi numa tarde que ela ouviu uma conversa. Dois adultos sentados no sofá e os donos da casa em dois tamboretes que ficavam acomodados perto da mesa. A menina iria para a cidade. Lá, poderia estudar. A senhora cuidaria de tudo. Em poucos dias, a rotina mudou completamente. Chorou nas primeiras madrugadas. Muitas vezes, tentou se esconder. Fechava os olhos com toda a força possível, tentando ficar invisível. Lembrava-se de histórias contadas. Imaginava um mundo diferente.
Uma mudança, então, aconteceu. Decidiram novamente que era hora de sua partida. Arrumaram as coisas dela. Já era uma moça. Comentaram sobre um rapaz. Ele não respondeu o sim, nem disse o contrário. Arrumou as trouxas, porque era o que deveria ser feito. Estava lá sempre para obedecer. Chegando no novo lugar, continuariam a trabalhar do mesmo modo. Não estava certo permanecerem ali. A menina teria de se arranjar. Ela pegou a boneca e guardou dentro da sacola com as poucas coisas que tinha. Ele desconfiava do arranjo dos patrões. Dias depois, ela viu uma casa bem pequena, parecida com a da infância. Ajeitou os parcos objetos. Procurava relembrar dos aromas e sabores da comida do passado. Cantarolava como a mãe. E foi sentindo o corpo mudar. Permanecia confusa. Ele sabia de tudo. Como quem abraça uma criança, envolveu a jovem com ternura. Explicou que, agora, seriam juntos uma família. Ela tentava pensar nas histórias que as mulheres contavam. De repente, um bebê aparecia. Nunca lhe disseram como a vida começava. No entanto, tudo acontecia. A mãe tinha crianças menores em casa. Recordava da barriga da mulher que só fazia cuidar de muita gente.
Se pudesse encontrar alguém da sua terra, faria perguntas, ou ficaria quieta, ouvindo os segredos das mulheres mais sábias. Ele queria dizer outras histórias, mas falava pouco. Muitas vezes, observava a jovem com a boneca no colo, nas horas em que a solidão encontrava com a saudade. Com medo de que ela ouvisse o seu peito gritar de dor, comentava sobre algo do dia, mostrava a ela uma flor, apontava uma constelação distante. Assim viviam. Juntavam, a cada dia, as incertezas de um com as do outro. Estendia as mãos a ela. Deixaria, todas as noites, uma lâmpada clareando o quarto que ainda era somente dela. Ajeitava alguns objetos para quem se fazia, a cada instante, mais presente. Chegaria o dia em que seriam três. E, talvez, com alguma sorte, pudessem partir para longe.
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