Algodão doce
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Ouça o áudio de "Algodão Doce", da colunista Giseli Barros:
No dia em que as latas ficaram vazias, cada um foi enviado para a casa de um parente. Seria por pouco tempo. Ele disse que voltaria. Havia a promessa de um emprego na cidade vizinha, mas não seria possível levar os filhos. Desse modo, até que as coisas se arranjassem, estariam todos seguros em lares conhecidos. Passaria para vê-los nos dias de folga. Era uma promessa. E assim o fez. Criou-se a rotina das visitas. Quando podia, trazia um agrado. Certa vez, juntou os irmãos para um passeio. A meninada derretia o algodão-doce bem devagarinho, com medo de que a felicidade acabasse.
Ela sabia que não era a mais nova entre os seis irmãos, mas desconhecia a idade exata. Quando foi ficando maiorzinha, disseram que estava na hora de auxiliar nos afazeres. Eles não tinham culpa da má sorte do pai dela. Lá no fundo, bem guardadinho, sabia que permaneceria sozinha por muito tempo e fez o que lhe foi solicitado. Os sábados já não amanheciam em seus sonhos. Tão logo as janelas rangiam, tomava a sua caneca de café com pão dormido e iniciava as tarefas. Gostava um pouco do final da tarde. Sentava-se num tamborete que ficava perto da porta da cozinha e se perdia observando o sol que se eclipsava depois da montanha. Nessas horas, pensava como seria bom chegar até lá e se esconder também.
Vez ou outra, escutava uma conversa distante. Sobre o pai, não contavam o desfecho. Os adultos comentavam sobre uma das crianças que havia ficado doente. Outra, tempos depois, começou a dar muito trabalho para o tio, irmão mais velho da mãe. Como não soubesse o que fazer com a indisciplina do agregado, levou o menino para uma fazenda de gente conhecida que precisava de braços novos para a enxada. Escondida, chorava baixinho para ninguém perceber a sua presença. Depois de enxugar as lágrimas, olhava para os dedos das mãos. Fingia cortar as falanges, vendo a fisionomia dos irmãos sumirem da memória. Para sempre.
Numa manhã, em que a casa se preparava para a visita de um conhecido importante, não teve tempo de pedir desculpas pelo descuido com a louça guardada na parte superior da cristaleira. Ouviu tudo se espatifar em torno de si. Só conseguia lembrar-se do foguetório de uma noite festiva, logo nas primeiras noites, depois da sua chegada. Assustada, chorou sozinha mais uma vez, enquanto os outros corriam para ver o espetáculo. Agora, com o coração explodindo, desejava juntar os pedacinhos da porcelana. No entanto, a carne ardia com o chinelo estalando nas pernas, nas costas, nas mãos. Tampou os ouvidos, apertando muito os olhos também. “O mesmo barulho daquela noite.”, ela pensava. Resolveu gritar. Mais um estalo forte. Correu muito. Passou as pequenas mãos pela boca inchada. Não teve coragem de olhar para trás.
Não teria o tempo da cartilha de escola, mas aprenderia as letras da rua. Descobriu que era importante dominar os números para além da quantidade dos dedos das mãos. Fazia trocas importantes. Decifrava códigos. Sobrevivia. Saía e voltava, morando no mesmo lugar. E, quando o medo chegava, lembrava-se dos estalos na pele. Não retornaria para aquela casa de jeito nenhum. Aprenderia muito mais. Um dia, o pai afirmou que ela seria grande. Sim, ela seria mesmo. Então, nessas horas, criava histórias do dia do algodão-doce, admirando o sol que, em mais um fim de tarde, abraçava a montanha.
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