Registros do silêncio
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Ouça o áudio de "Registros do silêncio", da colunista Andreia Donadon Leal:
Imaginei, dias desses, que havia parado de escrever; deixava o silêncio fluir e falar por mim. Sobre o esquife do silêncio jazia alguém que já escreveu muito. Um epitáfio dizia: aqui jaz minha voz, arma da garganta; minha voz arrancada da laringe; minha voz emudecida. Aqui jaz uma alma discursiva que deu voz a laudas imaculadas, em pensamentos delirantes. Creio que disfarço bem meus sustos e complexos. Um passarinho rege uma orquestra de ruídos na rua. Barulho de martelos, latido de cachorros, diálogos de vizinhos, e a rodovia da chácara. Este é o ruído de minha vida. Trânsito intenso de tarde de terça-feira de tempo nublado. As luzes do Natal vão se acender nas ruas, praças, casarões e monumentos justamente às 19 horas do dia 19 de novembro. Penso em cabalas… Esses momentos matam a gente de esperança, ou matam a gente de bons fluidos e novas energias. No final de ano, a gente fica mais sensível, com saudades das pessoas que fizeram parte da nossa vida. O mundo é vasto com pedras no meio do caminho, com barragens em todos os cantos daqui. As barragens se multiplicam, invadem territórios, assassinam a mata. Quem disse que este povo merece menções especiais por se enriquecer às nossas custas, sangrando nossas terras e devastando nossas matas? Eu sei, meu Deus, que minha voz silenciosa tem mais valor para os campos destroçados e sem água! Ah, mas o acender das luzes vai enaltecer o espírito da alegria, que a maioria da gente perdeu. Eu perdi um punhado de fios por aí. Sim, sou, às vezes, realista demais! Sim, às vezes, sonhadora também. Não tenho meio-termo, e nesta vida há que se ter meio termo, meio partido, meio raiva, meio sangue de barata, meio astúcia. A impressão que se tem é a de que vivemos andando de cabeça erguida, mas pernas trêmulas de incertezas nos alertam. Creio que sofremos uma terrível ânsia de desesperança no porvir, talvez por medo de sonhar. Talvez, quem sabe, por medo de arriscar uma ousadiazinha, já que amanhã não teremos que justificar nossa ingênua esperança. Imagine desrespeitar a tradição de eliminar a postura de cruzar os braços, ou torcer para as coisas darem errado? Em Berna, como escreveu Lispector, é comum ver metade da plateia retirar-se antes de começarem as músicas modernas. Isto se deve a resistência que o povo tem pela palavra moderna; literatura moderna, música moderna… O povo suíço temia o moderno, por soar um pouco de suspeito ou aventureiro. Afinal, é cômodo e seguro enaltecer o que está canonizado. Para Clarice, esta postura não é apenas por gosto e respeito à tradição; é medo de errar, medo de arriscar… Os pássaros continuam a cantarolar na tarde que se esvai. A professora aposentada lamenta a falta d’água no bairro. Eu lamento, também. Ficamos lamentando os tempos idos. Retorno para casa. Abro a porta da varanda. Chove. Sento-me na cadeira. Deixo as águas da chuva lavarem meu rosto e corpo. Não movo um músculo. Fecho os olhos. Vivo este instante desrespeitando a tradição de me abrigar da chuva. Só a poesia do instante justifica minha esperança, sem medo de arriscar! Abri os olhos, porque o impulso do silêncio quis registrar meus discursos na tradicional folha de um jornal, porque as luzes do Natal novamente se acenderam…
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