A inscrição
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Ouça o áudio de "A inscrição", da colunista Giseli Barros:
A primeira sensação que reconhecia ao chegar era o cheiro dos móveis antigos quase sempre dispostos do mesmo modo. Era um prédio centenário, de estilo colonial, com muitas janelas, de onde se ouvia uma mistura de conversas bem animadas ainda no início da manhã. O portão aberto, pintado de branco, aguardava toda aquela gente, diariamente, para tomar lugar nas carteiras de madeira. Iniciando a sua rotina, gostava mesmo de passar pelo pátio de entrada, quando ouvia o último sinal tocar, um silvo longo que intimava passos mais ligeiros. No entanto, enquanto a maioria acelerava o andar, deixando assuntos inacabados para o recreio, ele aproveitava esse mínimo tempo para contemplar a coreografia fora do compasso.
Na sala, a sua carteira era a do canto, perto do armário já gasto pelo tempo. Estudava no segundo andar. Nos dias mais quentes ou de chuva fina e insistente, mantinha a janela aberta. Por se reconhecer tímido, pouco falava com os colegas. Parecia até desatento. Uma voz grave costumava inquirir a sua participação nas palestras, das quais tentava se esquivar, desviando estrategicamente o olhar de seus interlocutores. A janela quase sempre aberta funcionava como uma espécie de refúgio, a fuga perfeita das situações indesejadas. Em alguns momentos, perdia-se na observação da paisagem que misturava estilos tão diversos. Perguntava a si mesmo o que aquelas construções guardariam em suas memórias. Imaginava quantos alunos teriam ocupado a mesma carteira, quantos mais teriam escrito na mesma mesa, quem teria observado, assim como ele, as casas vizinhas, ou deixado sonhos e choros perdidos por ali.
Costumava ter poucas pessoas ao redor. Sem objeção, aceitava a convocação para as atividades em grupo. Não deixava de participar dos jogos, inclusive, na quadra da escola, mas, assim que podia, retraía-se. Achavam-no diferente. Havia interesse em especular sobre o seu comportamento. Porém, como não dava espaço para conversas avulsas, logo tudo se perdia entre cálculos, mapas e textos a escrever. Ninguém percebia, no entanto, a sua atenção para a menina que se sentava um pouco distante dele, num ponto estratégico, de onde conseguia se comunicar com todos da sala. Enquanto ele escolhia o silêncio, ela se comunicava habilmente, até mesmo pela forma como entrelaçava os dedos nos próprios cabelos, longos e castanhos.
Muitas vezes, torcia para que um professor ou colega da turma o escolhesse para o grupo mais animado, justamente aquele do qual ela faria parte. Poderiam, talvez, trocar alguma palavra. Ele gostava de Matemática, sabia explicar o funcionamento das coisas. Em casa, ensaiava diálogos, pensando numa forma de abordá-la. Escolhia a melhor camisa do uniforme. Andava devagar, aguardando a chegada da amiga. Poderia, sim, ser a sua amiga, caso ele tivesse a coragem de se aproximar. Aguardava o dia certo. Para a sua surpresa, foi numa sexta-feira, o momento mais especial do ano. Ele chegou atrasado e a turma já realizava a tarefa solicitada no início da aula. Pequenos grupos participavam da elaboração de um projeto que seria apresentado na semana seguinte. Ouviu alguém chamá-lo. Identificou o grupo. Havia uma carteira vazia. Sentou-se ali, atento ao que diziam. Evitava olhar para ela, para que ninguém soubesse do seu segredo. E tamanha foi a sua alegria ao sentir o perfume que vinha dos cabelos dela, enquanto a amiga brincava, desfazendo os cachos dos longos fios.
Aos poucos, começaram a ouvir a sua voz. Fez cálculos e sugeriu materiais ao grupo. Aguardou o final de semana passar, revisando a sua parte do trabalho. Chegou animado na aula seguinte. Hesitou ao pegar a carteira para ficar ao lado da menina que encantava os seus dias. Sem saber o que fazer, ajeitou-se como pôde. Agora, estavam um de frente para o outro. Ela olhava-o com atenção. Reparava na maneira como ele conseguia entender os comandos da atividade. Por um instante, viu que ela sorria. Ficou confuso. Não sabia se aquele sorriso teria sido direcionado a ele ou se, por alguma razão, sorria porque os outros também a admiravam. Olhou novamente em sua direção. Sim, ela sorria para ele. Se tivesse coragem, poderiam conversar no recreio. Chegaria o dia em que ele a convidaria para um passeio. Achava bonito quando um casal passava por ele de mãos dadas. Valeria a pena aguardar a passagem do ano, viver a incerteza do que viria. Estavam ali muito próximos, finalizando o último trabalho do ano. Sentia-se feliz.
Na medida em que a aula caminhava para o fim, calculava o tempo em que revelaria os seus sentimentos. Tinha apenas a leve certeza de que ela estaria na mesma escola. Talvez fossem para salas diferentes. Viviam os dias derradeiros do ano letivo, com um trabalho importante para concluir a etapa. Ela, com a alegria própria de quem se prepara para o voo, subitamente, pegou o corretivo e fez um coração na lateral do armário, o mesmo localizado após a última janela da sala. Queria registrar o seu nome para sempre. Um dia estariam em outros lugares, ela disse. Ana. De repente, um silvo bem longo, provocou o alvoroço no ambiente. Barulho de carteiras sendo arrastadas, vozes e assobios. Ele voltou para o seu lugar de costume. Acenou para o grupo. Deixou que todos saíssem apressados pela porta. Guardou, vagarosamente, o que estava na mesa em sua mochila. Foi, então, até o armário da sala e escreveu do lado oposto: “Ana, amo você”, deixando registrado, no cantinho da sala, um segredo a ser revelado num dia que estaria por vir.
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