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Hoje é quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

A árvore

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Árvore - Johann Siemens/Unsplash

Ouça o áudio de "A árvore", da colunista Giseli Barros:

Partiu ziguezagueando por curvas imaginárias. Guiada pelo vento, estava sozinha em sua primeira viagem. Não sabia nomear o que sentia e, talvez por isso, preferisse confiar no destino (ou na sorte). Depois de longo tempo, o corpo foi perdendo força até ser acolhido por um campo verdejante. Ali, permaneceu quieta por várias noites e, enquanto dormia, as lembranças de um passado recente faziam companhia a ela.

Demorou a acordar. Assim que despertou, sentiu que estava mesmo em sua nova casa. Espreguiçou-se bem devagar, para sentir cada parte do seu corpo. Era boa a sensação do calor do sol a envolvendo, ao mesmo tempo em que o vento a acariciava. Gostava também quando chegava a chuva, que a fazia crescer com mais força e vigor. Numa certa manhã, reparou que a paisagem em seu entorno igualmente se modificava, no transcurso natural da vida.

Aos poucos, tudo ganhava novas tonalidades. Havia árvores e arbustos, diversas flores. Os passarinhos construíam ninhos em seus galhos mais altos. E, nos momentos em que ventava mais forte, era bonito ver como os galhos dançavam, permitindo às árvores conversarem entre si. Ela, em especial, sentia-se imponente. Estava adulta e sabia muito bem que o seu papel naquele lugar era muito especial.

Às vezes, crianças brincando chegavam até ela e corriam o mais que podiam. Quando se cansavam, abraçavam o seu tronco, sentindo a textura da sua idade que já avançava. Alguns mais curiosos, descobriam segredos registrados à canivete em seu caule. No entanto, somente ela guardava os choros, as confissões, os beijos e as brigas daqueles que procuravam através dela uma espécie de acolhimento. Era cúmplice de mil histórias. Pedia discrição aos que ali residiam.

Contava aos iniciantes sobre a sua chegada e sobre o tempo da espera. Refletia sobre a continuidade das coisas e como tudo se transformava a todo momento. Via as casas construídas pelos homens. Poucas foram edificadas antes da chegada dela. Lembrava, mesmo vagamente, do campo verdejante, quase infinito. Algumas construções lhe pareciam mais acolhedoras, outras eram mais resistentes, algumas muito frágeis para abrigar tanta gente. E consciente da fragilidade do homem que, muitas vezes arrogante, tende ao controle da vida a qualquer custo, ponderava, ensinando às suas flores que essa, milagrosamente, é constante recomeço.

Suas raízes eram firmes e profundas. Era admirada. Quando alguém se deitava aos seus pés, perdia-se em conjecturas. Ninguém desconfiaria da sua eternidade. Era casa de muitas moradas. Suas folhas pareciam sempre coloridas de um verde profundo. Então, ela segredava aos seus o porquê de os pássaros escolherem as árvores como morada. Pedia às flores que desabrochavam em seus galhos para exalarem o mais intenso perfume. Segredava a elas que não tivessem medo, que muitas vezes ela veria também o vento fazer partir quem ali tivesse nascido. Receosas, muitas delas se fechavam. Faziam-se desobedientes. Ela, então, acolhia o silêncio. Esperava. Quando podia, abria os seus galhos como cortinas que deixam o dia entrar nas casas, revelando, assim, a mãe-pássaro que, no dia exato, mostra ao filho o tempo do voo. Emocionados, todos contemplavam o lindo o espetáculo. Na aparente partida, multiplicavam-se moradas.

Contudo, numa tarde qualquer, uma voz reclamou, quis fazer protesto. Afirmou que aquelas raízes eram fortes o bastante para sustentar todos os galhos. Se os pássaros buscavam novas moradas, não faria sentido que as flores deixassem ir embora as suas sementes. As flores eram úteis, embelezando a árvore-mãe, preenchiam o ambiente com seu perfume e, por fim, misturavam-se ao solo, quando tudo acabava. As sementes renovariam o seu entorno no tempo certo. Ela, a mãe, não iria a lugar algum e um dia ficaria sozinha.

A matriarca silenciou novamente. Quando o vento soprava, permitia que as flores se guardassem debaixo dos galhos. Os dias se tornaram mais calmos. Não havia mais protesto. Com o passar do tempo, mais pássaros partiram, para fazerem ninhos em outros lugares. Aos poucos, algumas flores passaram a questionar o silêncio. Outras observaram folhas secas se desprendendo dos galhos. Esperaram, ansiosamente, a chuva. Observando o olhar atento das flores, a mãe foi abrindo seus galhos devagar. Permitiu às filhas sentirem o sol aquecê-las. Felizes com o afago materno, viram, por fim, o tronco envelhecido daquela que ainda abrigaria a vida por muitos anos. Sabiamente, ela revelava a finitude à juventude que precisaria também escolher o dia do voo, para outros campos verdejantes. Caberia às flores dar liberdade às suas sementes. Agora, todas elas sabiam.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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