Anestesia
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Ouça o áudio de "Anestesia", da colunista Giseli Barros:
Sem o controle de si mesma, tinha os pensamentos embaralhados. Os sons eram desconexos com vozes que vinham de muito longe. Por longos minutos, travou uma luta ineficaz para abrir os olhos, porém, vencida pelo cansaço, desistiu, mergulhando no sono novamente. Depois de algum tempo, quando as vozes retornaram, percebeu que havia luz naquele lugar. Queria pedir para que alguém apertasse o interruptor, mas o corpo ainda não respondia aos seus comandos. Esperou, então, os olhos se acostumarem muito devagar ao ambiente. Sem perceberem que havia acordado, saíram, deixando-a imóvel e acompanhada apenas do barulho de um aparelho que não conseguia ver, pois estava posicionado mais próximo à cabeceira da cama.
Sozinha, começou a pensar em cada parte do seu corpo. Com lentidão, movia a cabeça para se sentir um pouco mais confortável. Seus membros pesavam como chumbo. Sentiu algo prender um de seus dedos. Certificou-se, em seguida, que o objeto estava conectado por um fio ao aparelho que emitia o som ininterrupto que preenchia o quarto. Não poderia sair dali. Era estranho, mas o seu corpo estava resumido ao que conseguia sentir naquele momento. Ao notar uma janela aberta, fixou o olhar para ver o que existia para além da cortina de tela.
Não fazia a menor ideia sobre o tempo em que estava imóvel. Lembrava-se, de forma vaga, da véspera. Teria passado um dia, talvez. Embora estivesse acordada, não conseguia diferenciar uma hora de um dia. E como isso lhe causasse certa aflição, olhou outra vez para a janela. Era uma tarde ensolarada. Sem nuvens no céu. Provavelmente, anoiteceria em poucas horas. Sentiu os olhos arderem um pouco. Resolveu descansar a visão da luz. Por fim, deteve a atenção para o mesmo ponto. Seria bonito aguardar o dia se recolhendo. Lembrou-se da infância e de como gostava da hora em que o céu se coloria até ficar coberto de estrelas. Quando criança, deitava-se no tapete verde e cheiroso. Era assim o quintal todo gramado, e de lá só sabia das horas, porque o céu se transformava de maneira admirável. O grande espetáculo do dia. Às vezes, no fim das tardes mais quentes, adormecia entre os brinquedos. O perfume da comida a acordava e a mesma voz afetuosa de todos os dias a chamava.
Agora, enquanto reminiscências invadiam os seus pensamentos, tentava retomar o controle da situação. Primeiro, reconhecer cada parte do corpo ainda tão pesado na cama levemente inclinada. Sentia o lençol, o cobertor e o travesseiro que a incomodava. Com um pouco de paciência, conseguiu ajustá-lo, ficando mais confortável. Ao mesmo tempo, a mente devagar em devaneios, recortando as lembranças que a visitavam, a confundia. Com esforço, lembrou-se mais nitidamente da véspera. Logo estaria fora daquela cama. Notou que as pernas anestesiadas começavam a acordar. Olhou para o lado oposto do quarto e viu uma mesinha com um vaso de flores, uma agenda e uma garrafa de café. Sim, alguém estaria por perto.
Acostumando-se com o barulho da máquina, passou a notar passos vindos do corredor, fragmentos de conversas e o deslizar de um carrinho. Talvez viessem com medicamentos. Pensou na comida servida nos hospitais. Sim, na véspera, havia feito uma refeição. Eles riram juntos, pensando no que fariam assim que ela recebesse alta. Gostaria de ter o telefone para enviar uma mensagem. Quem sabe uma ligação? O tempo se alongava. Ouvir uma voz querida a faria muito bem.
Muitas imagens se organizavam concomitante aos movimentos que retornavam. Vinha-lhe, de súbito, certa alegria daquele instante. De repente, com a respiração acelerada, teve a revelação de que estava anestesiada havia muito tempo. Pensando bem, a agenda cheia e os fins de semana completos de atividades mostravam-lhe que ela permanecia no mesmo lugar. Na rotina, tudo estava muito certo e ninguém afirmaria o contrário. Realidade aparente. Disso ela teve certeza. Assim, à medida em que o efeito do medicamento passava, tudo se esclarecia tão rapidamente, em sobressaltos, que era impossível dominar a emoção. Ali, parada, na impossibilidade de correr para onde quisesse, seu olhar buscava captar cada segundo da tarde que se esvaía. Imaginou-se mais uma vez na grama macia e úmida. Vislumbrou a liberdade. E com a expansão da própria consciência reveladora de que poderia fazer tantas outras escolhas, contemplou a projeção de si mesma numa coreografia sem ensaios, maravilhosamente harmônica, sentindo cada um de seus músculos. Aspirou o ar que a acariciava por dentro. Explosão de sensações. Era a hora de sair dali para a vida.

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