Uma quase fábula
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Ouça o áudio de "Uma quase fábula", da colunista Giseli Barros:
No início, o escuro. Depois da eclosão da primeira casa, nutriu-se do banquete posto à sua disposição. Nada de interrupções. As horas se encarregavam do trabalho engendrado meticulosamente pela natureza. Sem que soubesse, preparava-se para a próxima fase. De repente, enquanto ainda se acomodava ao ambiente e aproveitava do que lhe serviram, algo aconteceu, voltando à escuridão. Tudo calmaria. Completo silêncio. Com o passar do tempo, incomodou-se com o espaço cada vez menor da casa que habitava. Tentou ajustar-se em movimentos sutis. Pela primeira vez, sentiu a dimensão inteira do seu corpo. Com um dos extremos da morada rompida em um corte circular, emergiu do invólucro que o protegia e, guiado pelo instinto, seguiu.
Era quase imperceptível a sua presença. Tudo ao redor lhe parecia difuso. Não conseguia distinguir com clareza nenhuma forma. No entanto, ao mesmo tempo, sentia, devagar, o corpo miúdo se acostumar com a liberdade. Agora, não havia o banquete à espera. Fazia-se necessário apurar os sentidos, pois os cheiros diversos que se misturavam lhe confundiam as ações. Ficou imóvel. Aos poucos foi possível perceber que tudo ao redor se movimentava e encontrava o seu lugar. Determinou, então, para si que mais uma pausa lhe faria muito bem. Com olhos atentos, acomodou-se numa base segura. Esperou. Inesperadamente, algo que emitia um som semelhante ao seu aproximou-se. Reparou nos movimentos ágeis e nas voltas pelo ar. Quando deu por si, imitava-o. Expandia-se.
Aprendeu a ter segurança dos seus movimentos e a distinguir os cheiros. Quando anoitecia, recolhia-se como se estivesse vestido de um tipo de camuflagem. Horas depois, encontrava-se com os seus iguais que bailavam assim que os dias despertavam. Dentro das casas, misturava-se nos galhos das plantas, no canto de uma janela ou parede, para dormir. Nas horas mais quentes, outros vinham disputar o alimento servido em rotinas, geralmente, pontuais. Se com displicência aglomerassem em algum prato, alguém fazia o serviço de espantá-los dali. Com agilidade fugiam, para logo em seguida recomeçarem a refeição. Distraídos que estavam, alguns eram atacados com ferocidade. Assim, estrategicamente, tinham de enganar o olhar de quem os perseguiam, fingindo não estarem mais no mesmo recinto. Davam, portanto, folga momentânea aos donos da casa. Voltavam um a um para o fim do ato heroico e depois se recolhiam.
Certa vez, seguindo um grupo, guiados todos eles por uma mistura de vários aromas adocicados, chegaram a um imenso balcão. Com todo cuidado, mãos habilidosas distribuíam bandejas saborosas. Pousavam nos recipientes, mas era impossível transpô-los, porque cada um dos alimentos estava embalado sem nenhum espaço visível para passagem. Pudessem articular uma melhor forma de agir, evitariam danos para os mais afoitos. Sabiam: a perseguição era implacável. Agora, muitas mãos agiam com toda fúria. Não havia muito o que fazer, senão encontrar algum canto seguro para a espera. Calculou um voo rápido. Hesitou por um momento. Afastou-se de uma das bandejas. Escondeu-se entre as fibras abertas da toalha. Retornou novamente ao ponto de partida, lançando-se ao inesperado. Alcançou um balcão com portas de vidro. O ar adocicado era inebriante. Sem demora, ultrapassou uma das portas entreabertas. Estava a salvo. Como era aprazível o lugar em que estava. Voava naquele instante em liberdade. Extasiado, absorvia o que podia de cada doce, pão e biscoito. Não contava, no entanto, com a ação inesperada. No tumulto de algumas mãos que ainda recolhiam guloseimas para embalá-las em pacotes de papel, uma das mãos puxou a porta do balcão. Sim, estava seguro e ali era o melhor lugar para estar. Saciou-se como pôde. Dormiu como no primeiro dia. Nada lhe apertava o corpo. Não sabia, porém, da última fase que o aguardava, preso no derradeiro sonho e repouso possível.

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