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Hoje é quinta-feira, 13 de março de 2025

Uma conversa despretensiosa

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Uma conversa despretensiosa em um ponto de ônibus de Ouro Preto

Ouça o áudio de "Uma conversa despretensiosa", da colunista Giseli Barros:

Depois de um longo dia exaustivo, subia uma das ruas centenárias de Ouro Preto, distraindo-me com a bela paisagem, numa vã tentativa de não me ocupar do cansaço que sentia. O corpo estava pesado, pois uma gripe forte chegava sorrateira. Ainda na metade da íngreme subida, avistei o ônibus descendo uma das mais belas ruas da cidade, na qual, invariavelmente, turistas e casais buscam forjar poses casuais para divulgar fotos nas redes sociais. Respirei fundo e continuei a caminhada. Do dia, o resultado era positivo e a última aula não fora boicotada pela presença indesejável da virose que se instalava em meu corpo.

Aproximando-me da praça, ainda vi o veículo realizando va-ga-ro-sa-men-te a manobra na curva. Eu poderia correr ou gritar, poderia até mesmo acenar para o motorista, mas seria uma ação em vão. Além disso, faltava-me a vontade de terminar a subida correndo. Preferi, então, aceitar o atraso para a chegada em minha casa. Acalmei os meus pensamentos e continuei admirando a linda cidade barroca.

Ao chegar ao local de espera, acomodei-me num banco de concreto. Verifiquei algumas mensagens no celular e abri um livro. Antes de iniciar a leitura, observei a presença de um homem que andava calmamente entre alguns cachorros. Notei que ele analisava a movimentação das pessoas. Às vezes, parava e gesticulava um pouco. Em seguida, cumprimentava alguém como se conhecesse o possível interlocutor de longo tempo. Prosseguiu com os passos calmos. Iniciei a leitura do livro. Em instantes, reparei que os cachorros se ajeitaram mais ou menos perto do lugar no qual eu estava. Não havia ninguém à espera do mesmo ônibus que eu. Fechei o livro e vi que o homem me encarava. Com muita tranquilidade, ele sorriu e me perguntou as horas. Respondi. Perguntou se eu iria para a cidade vizinha. Eu disse que sim. Ele sorriu novamente e disse que eu havia perdido o ônibus. Ainda comentou: “Virou agorinha aquela curva. Você vai demorar um pouco aqui.” Eu sorri de volta e afirmei que sim. Ele, então, ficou, por alguns segundos, em silêncio e, por fim, perguntou o meu nome. Percebendo que poderia conversar, iniciou de vez o diálogo. Via-se que ele queria mesmo uma conversa. Sabia da demora da minha espera.

Não sei se ele reparou que eu também o observava. Definitivamente, deixei o livro fechado, mantendo a atenção no meu interlocutor. Vendo que eu tinha uma bolsa com objetos escolares, perguntou se eu estudava ou se já era uma pessoa formada, e logo emendou a sua resposta à minha: “Também sou.” Sorriu e olhou, de forma despretensiosa, para os cachorros, que dormiam no mesmo lugar. Curiosa, falei: “Que coisa boa! Estudou qual curso?”. Ele mexeu no bolso da camisa, ajustando umas canetas, sorriu e respondeu: “Sou axiomático. Formei em Axiomatologia.”. “Que interessante!”, eu disse. E fiquei ali curiosa, aguardando a continuação da palestra. Fez uma pausa. Demorou um pouco em silêncio. Comentou que conhecia a cidade marianense, mencionando alguns bairros. Nesse momento, um dos cachorros trocou de lugar. O homem retomou o silêncio, pegou uma das canetas e começou a mexer nela como se tentasse fazê-la funcionar, mas não tinha papel. Carregava uma sacola preta. Ficou quieto. Não dava para saber para onde estava indo, quando resolveu parar ali, naquele ponto de ônibus. Mexeu na sacola. Depois de alguns instantes, ocupou-se da caneta novamente, abrindo-a. Ajustou as duas partes com cuidado e guardou-a no bolso junto das demais. Em seguida, tornou a falar: “Você gosta da vida?”, respondi que sim. Ele sorriu mais uma vez e prosseguiu: “A vida é boa mesmo. Eu gosto muito. Se você souber viver, a vida é boa de verdade. Muita coisa acontece com a gente, né!? Acho que temos a mesma idade. Talvez eu seja mais velho que você poucos anos.”. “Pode ser”, eu falei. “Então, eu acho a vida muito boa. A gente faz as coisas que dá. Tem outras que ficam ‘pra’ trás. É assim. Acho que é assim com todo mundo. Não dá ‘pra’ saber muito bem o que vai acontecer amanhã. Mas eu acho que será um dia bom. Você acha que amanhã será um dia bom?”. Eu disse que sim. Ele, então, pensou um pouco. Pegou a caneta novamente e mexeu na sacola. Guardou a caneta no bolso. E começou a ventar. Olhou para um dos prédios mais antigos da cidade. Ficou mirando o céu. Depois, continuou: “A vida é boa mesmo. Você veja que tem dias que fazem muito calor, depois vem o frio. A gente pode ficar doente, depois a gente fica bom de novo. E se a gente for uma boa pessoa, dificilmente fica sozinho, porque sempre tem alguém com a gente. Sempre tem uma coisa boa depois de uma coisa que é ruim. Às vezes, a gente precisa esperar. Não tem jeito. Não adianta ter pressa. Depois a coisa boa acontece. A vida é desse jeito. Ela tem as suas vontades, tem os seus caminhos. Você é uma pessoa boa. Eu também sou uma pessoa boa. Boa noite ‘pra’ você! Daqui a pouco passa o seu ônibus.”

Mexeu mais uma vez na sacola, comentou da noite bonita e fresca e começou a andar. Os cachorros levantaram. Eram seus. Ele me disse que viviam com ele, depois que perguntei se sempre o acompanhavam. Foi andando calmamente em sentido contrário de onde tinha vindo minutos antes. Parecia uma comitiva, uma página de livro. Fiquei pensando, juntando as palavras “axioma”, “axiomático”, “axiomatologia” com a palestra a que acabava de assistir. Já ventava mais forte, uma noite fechando o verão. E o ônibus chegou.

Foto de Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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