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Hoje é segunda-feira, 31 de março de 2025

Estudante da UFOP denuncia caso de racismo em república

Ana Luiza relata que uma ex-moradora fez diversos comentários racistas e ao procurar amparo, não recebeu apoio.

Ana Luíza Rodrigues, estudante de jornalismo, era moradora da república desde 2022, quando começou sua graduação na UFOP. – Foto: Gustavo Batista/Agência Primaz
Ana Luíza Rodrigues, estudante de jornalismo, era moradora da república desde 2022, quando começou sua graduação na UFOP. – Foto: Gustavo Batista/Agência Primaz

No último domingo (09), a estudante de jornalismo, Ana Luíza Rodrigues, publicou em seu Instagram uma denúncia envolvendo um caso de racismo vivenciado com estudantes da República Mandacaru, república particular localizada em Mariana. Segundo relato, uma ex-moradora da república teria feito comentários racistas, descritos por Ana como “microviolências”, além de excluí-la em conversas e espaços de convivência.

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Ana relata que procurou a representante da casa em busca de amparo a respeito da situação, porém afirma que além de não ter resolvido, o problema foi amenizado pela decana e nenhuma medida foi tomada na época, levando a decisão de se retirar da moradia. A publicação ganhou repercussão nas redes sociais e, nos comentários, levantou um debate da violência sutil vivenciada em espaços de convivência e a dificuldade na busca por acolhimento. Através de seu perfil no instagram, a república também se pronunciou sobre o acontecimento, lamentou a situação e afirmou que a suposta agressora foi expulsa da casa após os acontecimentos e não mantém mais relação com as atuais moradoras.

Entenda o caso

Natural de João Monlevade, Ana Luíza era moradora da república desde 2022, quando começou sua graduação no curso de jornalismo na UFOP. Segundo Ana, a vivência na casa era tranquila e ela mantinha um bom relacionamento com suas colegas. Inicialmente, ela se sentia bem, gostava das meninas e se apegou ao local. “Quando você entra na casa e aquele é o lugar que você chegou e as pessoas te acolheram, você cria afeto muito grande, porque é o que eles pregam, né? Que vai ser a sua família aqui”, relata.

No entanto, o primeiro grande incômodo era visual: Ana era a única moradora negra da república, cuja composição costumava variar de quatro a mais meninas. Em repúblicas particulares, é comum que durante a escolha de novas moradoras, as opções sejam debatidas entre as pessoas da casa. Com o tempo, Ana percebeu que o ambiente se tornava cada vez mais excludente, com a formação de um perfil fechado e a priorização de meninas “brancas, magras e heteronormativas”. “Em dois anos, acho que foram sete calouras que entraram e saíram”, a estudante relata, ressaltando que a falta de diversidade não era falta de opção. “Apareceram muitas meninas legais que até hoje eu sigo no Instagram e tipo acho super legais, mas mesmo assim não eram escolhidas”, afirma.

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A situação se agravou no ano passado com a chegada de uma nova caloura, que se tornou alvo de atenção e afeto das outras meninas. Com o tempo, a moradora começou ter práticas racistas que incomodaram Ana, como comentários relacionados a seu cabelo, o tratando de forma exótica, além de uma hiperssexualização de pessoas negras.

Em episódios rememorados pela vítima, ela reforça a diferença no tratamento. “Ela falava do meu cabelo de uma forma muito exótica, mesmo que fosse em elogio. Eram elogios que eu via que ela não fazia com outras pessoas”, a estudante detalha. “Pegava no meu cabelo sem pedir, sem motivos. Aí falava, ‘ai, você lava o seu cabelo’ como se fosse um grande evento. O meu cabelo é crespo, mas sim, eu lavo ele, porque ele é um cabelo, igual todo mundo lava. Todo mundo lava o cabelo, independente”, explicou indignada.

Em outro episódio, Ana relata um comentário da caloura que hiperssexualizava homens negros. Ela tentou conversar com a caloura, mas ela não reconheceu o erro, descrevendo a fala dela como apenas uma observação. A partir dali, outros episódios e microviolências continuaram a acontecer. ”Ela fazia umas piadas também de ‘Ai que eu teria que vestir tal roupa para reforçar minha negritude’, umas coisas assim”, dentre outros exemplos.

No Instagram, Ana usou uma citação de Audre Lorde, escritora, poeta poeta e ativista feminista. - Foto: Reprodução/Redes Sociais
No Instagram, Ana usou uma citação de Audre Lorde, escritora, poeta e ativista feminista dos anos 80 ao falar sobre o ocorrido. - Foto: Reprodução/Redes Sociais

Gota d’água

Após buscar amparo da casa. A decana da república (nome dado ao morador mais antigo que assume o papel de representante), apesar de ter sido informada sobre o comportamento da caloura, não tomou nenhuma atitude efetiva para resolver a situação. Ela propôs uma conversa individual entre ela e a moradora. Segundo a vítima, que ouviu a conversa, a caloura não reconheceu suas atitudes, descreveu o incômodo da Ana como insegurança e afirmou que ela não precisava ter contato com ela se não quisesse. A partir disso, foi decidido pela decana que estava tudo bem e que ela poderia continuar na moradia.

 

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Ana se sentiu desamparada e percebeu que não havia espaço para ela na república. Por isso decidiu sair, mesmo sem ter outro lugar para morar, pois não conseguia mais suportar o racismo e a falta de apoio das outras meninas. Até eu internalizar que, tipo, o que eu achava que era, não era aquilo tudo, é, foi muito difícil, então, é, acho que primeiro eu tive que entender, digerir tudo o que aconteceu”, explica. 

A vítima continuou em Mariana e a princípio apenas publicou um relato anônimo. A decisão de vir a público veio após a história se espalhar em seus círculos sociais como fofoca e gradativamente começar a ser deturpada. “Não era uma coisa que me incomodava as pessoas saberem, porque eu sei que eu sou muito mais que isso, apesar de provavelmente estarem falando: ‘Ai, a Ana que sofreu o racismo’: eu sei que eu sou muito mais que isso”, relata ela ao ressaltar que não tinha problemas com a situação vir a público, mas sim com o rumo que a história era contada.

No mesmo dia, após a publicação do relato, a República Mandacaru se pronunciou através de suas redes sociais, afirmando que a caloura foi expulsa da casa após os ocorridos e não mantém relações com as moradoras atuais desde o ano passado. Ainda segundo a nota, elas implantaram regras e protocolos para um ambiente seguro e lamentaram a situação ocorrida com Ana Luiza.

A República Mandacaru afirma não concordar com qualquer forma de racismo, discriminação ou violência. “A caloura mencionada no relato foi expulsa da República no ano passado e não tem qualquer contato conosco. Reconhecemos que a medida deveria ter sido tomada com urgência, o que é um erro que assumimos com responsabilidade “, detalha na nota publicada.

Fundada em 2010, a República Mandacaru é uma república particular feminina que recebe alunas da UFOP em Mariana. - Foto: Reprodução/Redes Sociais
Fundada em 2010, a República Mandacaru é uma república particular feminina que recebe alunas da UFOP em Mariana. - Foto: Reprodução/Redes Sociais

Posicionamento da universidade

Questionada pela Agência Primaz sobre o episódio, a Assessoria de Comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), instituição em que todas as envolvidas são alunas, afirmou que o caso está em investigação e que apesar de ter ocorrido em um ambiente fora dos espaços da universidade, sempre buscam entender e acolher acontecimentos ligados ao ambiente acadêmico. A Universidade também explicou os procedimentos realizados em casos de denúncias de atos discriminatórios, confira a nota emitida pela universidade:

“A atuação no combate ao racismo e outras formas de discriminação é uma premissa da Universidade Federal de Ouro Preto, marcada reiteradamente em seus posicionamentos e diversas ações de promoção de inclusão e diversidade. No âmbito da UFOP, as denúncias de atos discriminatórios são feitas pelo portal Fala.BR e então recebidas pela Ouvidoria Geral da Universidade, para que sejam encaminhadas aos responsáveis pelo tratamento ou apuração e pela aplicação das sanções previstas, quando cabíveis.

Ressaltamos, porém, que, em conformidade com a legislação e com os princípios de direito à ampla defesa, a Instituição não pode comentar sobre casos individuais em investigação. É importante salientar ainda que, independentemente de sermos notificados ou de o caso estar ou não em nossa alçada, sempre buscamos entender os acontecimentos que envolvam membros da comunidade acadêmica para que também possamos contribuir para a solução dos conflitos e, acima de tudo, proporcionar apoio e acolhimento às pessoas envolvidas.”

Quem é Ana Luíza?

Ana Luíza Rodrigues é estudante de jornalismo e atualmente está no sexto período da graduação. Na universidade, é integrante do Ariadnes, projeto de ação afirmativa e extensão que busca combater as violências de gênero no ambiente universitário. No site do projeto, Ana publica criticas cinematográficas e análises audiovisuais através da perspectiva de gênero e raça. Ela relata que sua participação no coletivo, e em outros ambientes que proporcionavam debates acerca desses temas, foram cruciais para criar uma autoconsciência sobre a discriminação que vivenciava em casa.

Ana Luíza ao lado do Ariadnes, projeto de ação afirmativa e extensão que busca combater as violências de gênero no ambiente universitário. Através do projeto, Ana publicou o primeiro relato anônimo do caso. - Foto: Reprodução/Redes Sociais
Ana Luíza ao lado do Ariadnes, projeto de ação afirmativa e extensão que busca combater as violências de gênero no ambiente universitário. Através do coletivo, Ana publicou o primeiro relato anônimo do caso. - Foto: Reprodução/Redes Sociais

Apesar disso, Ana lamenta não ter enfrentando a situação antes e esclarece que o racismo por vezes ocorre de forma sutil ou fantasiado de brincadeira, “eu esqueci um pouco até da minha identidade de que eu era uma pessoa negra quando eu estava ali, sabe? Porque eu estava vivendo mais a experiência de estar numa universidade, que era tipo uma coisa que eu queria muito, eu estudei muito para conseguir e também estava gostando muito do curso”.

É tão sutil. Porque às vezes você pode reconhecer um olhar e perceber que aquele olhar é diferente para você, porque você sabe, você sabe o motivo dele ser diferente”, explicou.

Caso não é isolado

A Agência Primaz já noticiou outros casos de racismo e violência ocorridos no ambiente universitário. Em maio de 2022, estudantes pintaram os rostos de preto e marrom, o chamado “blackface” para participarem do “Miss Bixo”, tradicional festa à fantasia de início de período dos estudantes da UFOP. Na ocasião, houve protestos e alegação de racismo, pois pintar-se de negro para compor uma fantasia pode ser categorizado como racismo, pois desumaniza as pessoas negras e as coloca como “fantasia”.

Já em dezembro de 2022, outro caso ganhou destaque na mídia local, uma estudante denunciou um caso de importunação sexual que teria ocorrido em uma república federal de Ouro Preto. No caso, a estudante da República Pecado Original relata que teria sido importunada sexualmente por um morador da república Consulado durante uma festa que acontecia no OPTC.

Em um comentário na publicação da nota no Instagram de Ana Luiza, o também estudante, Guilherme afirma: “Te desejo muita força Ana, só quem já morou em república sabe como eles fazem isso de uma forma ‘sútil’ aos poucos, até percebermos e depois ignorarem o ocorrido, como se a gente quem tivesse se afastado, se excluído. Fique bem”.

Sobre o sistema republicano, Ana Luiza pontua: “Esse sistema republicano é muito difícil porque não sei, não é uma coisa tão antiga em Mariana, porque né, tem uns 10, 15 anos, mas ainda assim é uma tradição e tem relações, né? E as pessoas não querem quebrar as relações e é muito difícil”, desabafa.

Foto de Gustavo Batista
Natural de Contagem (MG), Gustavo Batista é aluno do 6º período de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto