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Hoje é quarta-feira, 2 de abril de 2025

Silêncios

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Ouça o áudio de "Silêncios", da colunista Giseli Barros:

O despertador, programado para a mesma hora do dia, a sobressaltava do sono pesado. Ainda entre fragmentos de sonhos e dos acontecimentos da véspera, sentia a mente empurrar a cabeça contra o travesseiro, desejando sair daquela espécie de transe. Em segundos, como em todas as manhãs, travava o alarme, enquanto distinguia os primeiros sons no seu entorno. Para não perder tempo, seguia uma rotina bem controlada. Aos sábados, preparava as marmitas das principais refeições e os lanches, e organizava a casa, distribuindo algumas tarefas. Durante a semana, as noites eram dedicadas para colocar leituras em ordem, assistir aos noticiários, finalizar determinadas atividades da casa e do trabalho, sem perder de vista o planejamento financeiro. A família estava ali, dentro do organograma. Tudo sempre meticulosamente escrito. Evitava ao máximo a ida ao supermercado, estudando os dias e os horários mais adequados para as compras, para esquivar-se de filas intermináveis. Se fosse possível, todas as transações seriam feitas através de aplicativos.

Estava confortável e segura da vida, ao menos aparentemente. Depois do banho e do tempo do café, misturava-se ao barulho externo. Nem percebia como as vozes disputavam atenção dentro e fora de si mesma. Muitos diálogos se repetiam ao longo das horas: as mesmas considerações sobre prazos de entregas e novas exigências; as conversas sobre filhos, amores e desencontros; análises comportamentais proferidas por interlocutores imprudentes; conjecturas vindas de especialistas de oportunidade. Seus batimentos integravam-se ao ritmo do ambiente e isso a excitava. Fazia parte de tudo o que a rodeava. Somente na cama, o corpo pesava. Prêmio para quem tinha ciência da própria produtividade e dinamismo.

Sozinha, sentia os pensamentos ainda mais produtivos. Traçava planos para a realização de projetos, conferia as mensagens no celular e fazia anotações. Como um hábito adquirido, ou mesmo construído com afinco, simulava diálogos que teria em algum momento da semana. A mente trabalhava de forma ininterrupta. De súbito, quando o telefone tocava ou quando checava um e-mail, ria da coincidência e emendava: “Estava pensando justamente sobre isso.”, e dava fôlego às ideias, tão integrada estava ao mundo que, assim como ela, era ágil. Tinha o controle da própria consciência e do tempo.

Em algum momento, porém, notou um barulho. Algo como um apito se fez presente até mesmo durante o sono. Incomodou-se com aquilo. Começou a ficar impaciente com a casa e os vizinhos. As ruas ficaram insalubres, assim como o trabalho. Já não participava com entusiasmo das palestras cotidianas. Na interação, tudo a cansava, alterando o humor. As reclamações dos outros provocavam-lhe náuseas. Despertava com dificuldade. Depois de muitos dias, sentiu-se completamente exausta. Entregou-se, por fim, ao que a perseguia e que tirava dela o pouco de ânimo que tentava agarrar com muito esforço. Parou. Aquilo era uma explosão em seu interior. Doía-lhe todo o corpo. Os músculos tensionados. Se não fosse a insistência daquilo que tentava escapar da pesada caixa que era a sua cabeça, ouviria, tão atenta que estava, o sangue circulando pelas veias e artérias, o coração bombeando, ininterruptamente, o rubro líquido. Com os olhos cerrados, enxergava a matéria densa trabalhando, cada órgão integrado para exercer a função essencial de mantê-la ali. Resistia com dificuldade ao profundo torpor.

Teve, então, uma atitude brusca. Afastou-se do que lhe parecia insalubre. Rompeu a rotina, abandonando anotações, o passo a passo dos dias. No entanto, aquele som não se esvaía. Nenhum medicamento resolvia o seu problema. Considerou, num lance, a insanidade. Teve receio dos pensamentos que chegavam. Quis mudar para sempre. O mundo pesava-lhe a cabeça. “Quem sabe um novo emprego, nova casa e outras pessoas?”, indagava. Contudo, apesar de todas as hipóteses, as interrogações não a levavam ao lugar da cura. Sem saber o que fazer, esquivou-se do tempo. E, de repente, sentiu leve prazer ao se dar conta dos pulmões movimentando-se com o ar que entrava e saía. Repetiu o exercício por muitas vezes, como uma criança que, aos poucos, aprende o que é o próprio corpo. Achou engraçada a ação tão infantil e riu desesperadamente. Talvez explodisse dada a felicidade que a preenchia naquele instante. Teve medo da sua suposta inocência, mas insistiu. Descobria a força do silêncio, como se fosse possível caminhar por todos os espaços interiores, sem interrupções. Enquanto o corpo respondia ao sentimento que o animava, experimentava uma calma desconhecida. Sim, era isso. Teria de ser assim. Daquele momento em diante, aproveitaria o seu silêncio para descobrir outros. Aquele era o encontro verdadeiro consigo mesma.

Foto de Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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