O que eu vi(vi) no dia 5 de novembro de 2015

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “editoriais”

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Foto: Lui Pereira/Agência Primaz - Novembro/2020

Eu havia acabado de gravar o jornal no estúdio, por volta das 17h, e já me preparava para encerrar meu expediente na TV Top Cultura quando desço as escadas e encontro a produtora que informa que a barragem de Bento Rodrigues havia acabado de romper. À época, eu sequer sabia do que se tratava uma barragem, mas o olhar de preocupação, tanto dela quanto do meu chefe, já me fizeram acender o alerta de que algo grave acabara de acontecer.

Sem tempo para entender a situação partirmos, eu e o repórter cinematográfico, em direção a Bento Rodrigues. No caminho, começavam a chegar as primeiras mensagens no Whatsapp de pessoas que, como eu, também buscavam respostas.

Próximo da entrada de Bento Rodrigues uma barreira da polícia impedia que avançássemos. Como éramos da imprensa, porém, conseguimos passar por ela. Até que, enfim, chegamos na entrada do distrito. Uma nova barragem, novamente da PM, nos informava que mesmo que quiséssemos avançar não encontraríamos nada, uma vez que não havia mais luz no local – e já era noite. Junto a nós, apenas a equipe da Band estava no local, que havia chegado antes de nós. Eles preferiram seguir o distrito. Nós permanecemos ali para buscar mais informações com os policiais.

Foi só então que eu comecei a entender, de fato, o que estava acontecendo. Veículos de todo tipo passavam por nós vindos de Bento Rodrigues, carregando pessoas irreconhecíveis pela lama, mas com um olhar de espanto e incredulidade bastante visíveis.

As primeiras entrevistas, as primeiras respostas e uma delas, bastante simples, resumiu: “Bento Rodrigues acabou“.

Sem conseguir ir além, partimos para Santa Rita Durão, um distrito próximo, mas que não foi atingido. Lá, começavam a chegar algumas vítimas que ficariam no ginásio municipal e desde já algumas doações e depois finalizamos o dia de gravações na Arena Mariana, onde o cenário era semelhante. Pouco a pouco, eu começava a entender a dimensão do que havia acontecido. Ou, ao menos, eu achava isso.

Voltamos para Ouro Preto já sabendo que o dia seguinte seria longo. Às 6h já estava de pé e pronto para seguir até a Arena Mariana. Ao chegar lá, imprensa de todo canto e muitas, mas muitas doações traziam um pouco de alento no meio de tanta tristeza.

A partir dali, foram incontáveis entrevistas, coletivas, chamadas ao vivo, passagens, ligações e um desejo enorme de fazer do microfone um instrumento que pudesse ajudar aquelas pessoas. E assim foi até por volta das 23h. Mais de 12h totalmente envolvido a ponto de nem sentir cansaço, fome ou vontade de ir embora.

Dias depois, tive a oportunidade de ir ao distrito de Paracatu de Baixo, o segundo mais atingido pela tragédia. Casas cobertas de lama até o teto, carros com as rodas pra cima e eu com os pés na lama sem saber ao certo se era tóxica ou não. É que a vontade de fazer jornalismo falava mais alto que qualquer risco.

Com lama na canela fui até onde deu. E não deu pra ir muito longe. Nem eu nem os bombeiros que tentaram, em vão, socorrer um cachorro totalmente preso na lama. Só restava lamentar. Outros tantos animais andavam pra lá e pra cá atônitos, e foi essa a minha pauta para aquela reportagem e que rodou o país no Jornal da Cultura.

Em certo momento, enquanto o repórter cinematográfico fazia tomadas para a minha matéria, eu me sentei no chão e olhava, de longe, toda a dimensão do estrago. Nenhuma palavra ou imagem capturada conseguiria descrever o que havia se tornado Paracatu de Baixo. E eu tentei, viu?

Isso a Globo não mostrou

Foi, sem dúvidas, a maior cobertura que eu tive a oportunidade de fazer na vida. Participei da coletiva de imprensa da Samarco – aquela que a equipe do CQC foi barrada. No meio de Globo, CNN, BBC, Folha, G1, entre outros grandes conglomerados da mídia, tive que discutir com a assessora para eu poder fazer minha pergunta – a única voltada para as vítimas, diga-se.

Enquanto eles falavam em seus jornais dos impactos ambientais e financeiros eu divulgava a lista das pessoas desaparecidas. Eles mostravam números, eu nomes. Como o do seu José, que no meio de tantas perdas materiais lamentava mais a da sua criação de galinha garnisé. Nunca me esqueci do senhor, seu José.

Outro nome que eu me lembro bem – e que passou a ser recorrente como uma das minhas fontes – foi o promotor Guilherme Meneghin. Àquela altura da cobertura, o foco era entender a judicialização do caso, e ninguém era mais preparado para isso que ele. O melhor de tudo era que, mesmo com toda a imprensa lá, ele sempre fez questão de dar a devida atenção a nós, a imprensa local. O mesmo fazia o prefeito Duarte Júnior.

Eu fiquei envolvido com o caso “barragem da Samarco” por cerca de 3 a 4 meses, até isso parar de ser a principal pauta do jornal. Não trabalho mais na Top Cultura, sequer moro mais em Ouro Preto, mas daqui de Belo Horizonte eu escrevo todo esse texto com as lembranças ainda vívidas da vez que acompanhei de perto a maior tragédia ambiental do país.

Até hoje tem muita família aguardando indenização e a conclusão do “Novo Bento”. Eu fico me perguntando se ali o seu José vai conseguir criar novamente suas galinhas garnisé…

(*) Rafael Câmara é jornalista, graduado pela Universidade Federal de Ouro Preto

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