Justiça desbloqueia bens da Vale mas mantém auxílio emergencial e outras conquistas de atingidos de Antônio Pereira
Moradores questionam agravo protocolado pela mineradora. Comissão de atingidos pede inclusão de relatório do MP às provas do processo
- Marcelo Sena
- 04/12/2020
- 19:59
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O desembargador Edilson Olímpio Fernandes deferiu parcialmente, na tarde desta quinta-feira (03), o pedido de efeito suspensivo (ou agravo) protocolado pela mineradora Vale e desbloqueou R$ 100 milhões das contas da empresa. No último dia 30, a Vale protocolou o agravo contra a decisão da juíza Kelen Silva, que ampliava o bloqueio financeiro de R$ 50 milhões para R$100 milhões e obrigava a mineradora a reparar integralmente os atingidos de Antônio Pereira, que vivem sob o risco de rompimento da Barragem de Doutor. Em sua decisão, o desembargador acatou apenas o pedido de desbloqueio dos bens da empresa, mas manteve as demais obrigações, como pagamento de auxílio emergencial e contratação de entidades técnicas independentes. Diante da decisão, a comissão de atingidos de Antônio Pereira enviou um e-mail ao desembargador solicitando a inclusão de relatórios às provas do processo.
Na decisão de ontem (03), o desembargador Edilson Olímpio Fernandes afirmou, ao autorizar o desbloqueio dos bens da mineradora Vale, que “na atual fase processual, não se mostra plausível manter a referida medida gravosa, mormente considerando-se o elevado valor bloqueado (R$50.000.000,00 – cinquenta milhões de reais), que pode inviabilizar a manutenção das atividades da recorrente e, sobretudo, o correto cumprimento das diligências de segurança que, certamente, demandam o dispêndio imediato de importâncias também elevadas para a sua consecução”. No final do documento, o desembargador confirmou que deferia parcialmente o pedido de efeito suspensivo protocolado pela Vale, “somente em relação à determinação de indisponibilidade de bens da empresa agravante, mantendo-se as demais disposições da decisão impugnada até o pronunciamento da turma julgadora”.
No pedido de efeito suspensivo protocolado na tarde de segunda-feira (30), os advogados da Vale pedem, além do desbloqueio dos bens, o fim do pagamento do auxílio emergencial aos atingidos de Antônio Pereira que não foram removidos ou que as casas não estivessem locadas no momento da remoção. O agravo defende que não há emergência na remoção das famílias de Antônio Pereira, pois o processo foi feito “de forma preventiva, e, porquanto, amplamente programada.”
“26. Nessa linha, não se pode cogitar o pagamento emergencial em benefício de pessoas que sequer foram removidas das suas residências, uma vez que não contaram com quaisquer impactos que pudessem colocá-las em situação emergencial.
27. Afinal, se os moradores da Zona de Autossalvamento contaram com um processo totalmente planejado, que por si já afasta a necessidade de pagamento emergencial, por muito menos os proprietários de imóveis, que não residiam no local, ou tampouco tiveram contratos de aluguéis afetados pela remoção, contariam com condições para fazer jus ao auxílio.”
A Vale classificou a contratação de uma assessoria técnica independente como um “procedimento extremamente custoso, burocrático, ineficiente e complexo”. De acordo com o documento, a “abrangência dos impactos é muito singular e restrita a um número de pessoas, podendo ser fácil e consensualmente composta pelas partes, com o acompanhamento dos órgãos públicos competentes. Isso traz mais efetividade e celeridade à resolução das questões.”
A mineradora também criticou a contratação do GEPSA, grupo de pesquisa vinculado à UFOP, contratado para elaboração de diagnósticos e planos de reparação integral. O agravo diz que a contratação do grupo representa uma sobreposição de tarefas e, além disso, a Vale critica uma suposta proximidade entre o GEPSA e as assessorias técnica. “Nesse sentido, o forte vínculo do GEPSA com as assessorias técnicas inviabiliza que o grupo de pesquisa atue com saber técnico equidistante e imparcial, o que é necessário para o papel de perito do juízo para apoio ao julgamento do caso. Com efeito, a elaboração do diagnóstico em questão já parte de um viés fortemente marcado pela agenda antimineração.”
Diante da publicação do agravo, moradores e membros da comissão de atingidos de Antônio Pereira reuniram-se com o promotor de justiça Thiago Correia para cobrar uma ação mais incisiva do MP na garantia de direitos dos atingidos pelo risco de rompimento da Barragem de Doutor. Entre as solicitações, o grupo pediu para que fosse incluído, nas provas do processo, um relatório realizado por servidores do Ministério Público, finalizado em 19 de novembro de 2020.
Bruno Gurgel é morador da Vila Antônio Pereira e participou da reunião. O atingido questionou o agravo da Vale e explicou o motivo da mobilização no Fórum de Ouro Preto. “Esse tipo de agravo da Vale deixa a comunidade bastante angustiada porque ele não condiz com a verdade. Como disse o promotor, a Vale quer trabalhar com o sofrimento das pessoas e esse agravo causou uma grande comoção na comunidade. Por isso nós fomos fazer essa manifestação pacífica. O promotor nos recebeu, comissão de atingidos e alguns membros da comunidade, e nos deixou mais tranquilos. Disse que o Ministério Público vai agir com bastante energia para interpor alguma coisa contra esse agravo”.
“Segundo ela [Vale], essas remoções são totalmente programadas. Na verdade, a pessoa sai quando a Vale quer e, muitas vezes, para a casa que a Vale quer. Então, eu acho que o agravo deixa uma revolta muito grande para a sociedade aqui”. (Bruno Gurgel, atingido da Vila Antônio Pereira)
De acordo com Bruno, o promotor garantiu que solicitará à juíza a remoção de famílias que a Vale não reconhece como moradoras da Zona de Autossalvamento da Barragem de Doutor. “Ainda existem mais de 30 famílias que o MP considera que esteja na ZAS e que não foram removidas. Com as coisas que ela escreve no agravo, a Vale deixa as pessoas de Antônio Pereira extremamente chateadas, pois ela tenta retirar da população as pequenas conquistas que já teve. O fato de ela [Vale] querer tirar o auxílio emergencial dos proprietários que estão, sim, sendo diretamente atingidos, já que não podem mais utilizar suas casas e, alguns que tinham o aluguel, já não tem mais. Eles não sabem como vão pagar o IPTU do ano que vem e a questão da manutenção das casas eles não sabem como vai ficar. Ou seja, eles estão sendo atingidos do mesmo jeito que os outros moradores”.
Bruno também questiona a afirmação da Vale de que as remoções estão sendo feitas de forma planejada e disse que o agravo gerou um sentimento de “revolta” na comunidade de Antônio Pereira. “Em um momento do agravo, a Vale fala que tudo foi feito muito programado, que tudo foi muito bom para a população. Ela não vê dano nenhum à população e, na verdade, isso é um absurdo. As pessoas estão sendo retiradas de suas casas, indo morar de aluguel por um período que elas não sabem qual. As pessoas estão perdendo as suas relações sociais, não se sabe se volta para a sua casa ou não. Existem sim danos morais, danos materiais a essa população e a Vale nega constantemente. Segundo ela, essas remoções são totalmente programadas. Na verdade, a pessoa sai quando a Vale quer e, muitas vezes, para a casa que a Vale quer. Então, eu acho que o agravo deixa uma revolta muito grande para a sociedade aqui.”
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“A única coisa que eu queria da Vale é o respeito com a minha família, com os meus vizinhos e eu poder ter a minha vida em paz.” (Lucilene Santos, atingida de Antônio Pereira)
Lucilene Santos, atingida de Antônio Pereira, também esteve na reunião e disse que foi “muito bem recebida” pelo promotor. “A Vale, como sempre, age pelas nossas costas. Eu recebi a informação do agravo no Whatsapp, porque comunicação a gente não tem nenhuma. Depois que a gente viu a notícia da Vale querendo cortar os nossos benefícios, a gente foi lá no promotor.”
Lucilene também lamenta a interrupção de sonhos e projetos diante do risco de rompimento da Barragem de Doutor. “A nossa vida parou. A Vale acabou com a nossa vida, acabou com o nosso sonho. Se hoje a gente tem uma obra para fazer em casa, a gente não faz porque não sabe o dia de amanhã. Cada hora é uma coisa. A Vale vem e fala que a gente não tem risco. A Defesa Civil vem e fala que a gente tem risco. Então a nossa vida acabou.”
A atingida disse ainda que espera da Vale mais respeito no processo de descomissionamento da barragem. “O que eu espero da Vale é que ela trate as famílias com respeito, com dignidade. A gente não pediu para passar por isso que a gente está passando. É um descaso da Vale com a gente, sabe? Não responde e quando responde é com falta de educação. A única coisa que eu queria da Vale é o respeito com a minha família, com os meus vizinhos e eu poder ter a minha vida em paz.”
O GEPSA em Antônio Pereira
Diante das afirmações presentes no agravo da Vale, nossa reportagem conversou com Tatiana Ribeiro de Souza, professora do curso de Direito da UFOP e coordenadora do Grupo de Estudos sobre Políticas Socioambientais (GEPSA). Tatiana questionou os argumentos presentes no agravo e defendeu a contratação das entidades independentes em defesa dos atingidos. “A empresa sempre defende que ela pode fazer esse trabalho, que ela deve contratar uma entidade da confiança dela e ela vai dizer quais foram os danos causados, como vai ser reparado, com quanto e quando. Então, todas as medidas que devem ser tomadas, ela roga para si a capacidade de fazer isso. Como ela é a causadora do dano, ela tem que ser afastada desse controle da reparação, porque ela é a criminosa. Ela é a causadora dos danos”.
A professora explicou que o GEPSA foi contratado para dois tipos de intervenção: diagnóstico e reparação. “O Ministério Público indicou 3 instituições para que fosse escolhida uma entidade, para realizar o diagnóstico socioeconômico de Antônio Pereira, que é para fazer o levantamento dos danos causados em Antônio Pereira que precisam ser reparados por causa da Barragem de Doutor. Dentre as instituições indicadas, a juíza escolheu o GEPSA. Na decisão, a juíza atribui ao GEPSA duas atividades: elaboração do diagnóstico socioeconômico e a execução dos planos de reparação integral. A gente apresentou, na semana passada, o plano reformulado mostrando quais atribuições o GEPSA vai cumprir e o que a gente precisa que a assessoria técnica faça.”
Tatiana defende que, para que o grupo inicie os trabalhos na comunidade, é necessário que todas as ações emergenciais tenham sido executadas. “A assessoria técnica precisa acompanhar o cumprimento das medidas emergenciais. A gente não tem como fazer diagnóstico socioeconômico se a população estiver passando por sofrimento mental, se não tiver assistência à saúde, se as pessoas que foram deslocadas não estiverem já realocadas com segurança, sem que as pessoas estejam recebendo o auxílio emergencial. Como é que a gente vai fazer reunião, assembléia, sendo que as pessoas não têm o atendimento garantido?”dois
Vale lembrar
Diante do argumento da mineradora Vale, acatado pela Justiça, de que os bloqueios de R$ 50 milhões ou R$100 milhões poderiam “inviabilizar a manutenção das atividades” da companhia, vale lembrar que o lucro líquido da mineradora Vale, entre julho e setembro, foi de US$ 2,9 bilhões, de acordo com reportagem do site Valor Econômico.
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