Dissabores e futuro do transporte coletivo em Mariana

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “editoriais”

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Às vésperas de completar dois anos morando em Mariana, período em que já entendi bem o pensamento dos moradores, empresários e governantes locais, tomo a liberdade de opinar sobre um assunto que é muito polêmico na Primaz de Minas: o transporte público coletivo.

Antes de mais nada é preciso entender que não se trata de falar da empresa A ou B, mas de um serviço público que, segundo estabelece nossa legislação, é uma obrigação do poder público. No caso das linhas urbanas e interdistritais é uma responsabilidade direta da Prefeitura Municipal, que pode provê-lo diretamente por meio de veículos próprios (oficiais) ou por meio de concessão precedida de licitação. Nesse sentido há importantes marcos legais, como a lei geral de licitações e contratos públicos, a lei das concessões públicas e a lei de mobilidade urbana, todas federais e obrigatórias na definição das políticas públicas locais de transporte coletivo de passageiros.

Dito isso é curioso perceber que, apesar dos constantes debates públicos em torno do tema, não há em Mariana um sistema de transporte público coletivo licitado e adequadamente fixado pelo poder público local. Ocorre que em 2003 foi feita uma licitação em que a empresa que atualmente opera o sistema foi vencedora. Porém, depois de assinado o contrato de concessão o Tribunal de Contas do Estado anulou o certame e determinou à Prefeitura realizar nova licitação. Neste ínterim, à luz do princípio da continuidade do serviço público, a empresa continuou em operação amparada e determinada por decretos municipais e decisões judiciais.

Cabe lembrar que em 2016 houve uma nova tentativa de licitação que foi mais uma vez bloqueada pelo Tribunal de Contas, mantendo-se assim a precariedade do serviço. O julgamento final deste último processo aconteceu em 2018, momento a partir do qual a Prefeitura poderia ter iniciado novamente a licitação, livre dos problemas que haviam sido apontados pela corte de contas públicas. Porém, inexplicavelmente isso ainda não ocorreu.

Paralelamente, nos últimos anos o transporte público coletivo em todo o país imergiu em uma contínua e severa crise. O aumento dos preços dos insumos, em especial do óleo diesel, a proliferação do transporte clandestino e do uso dos carros de aplicativos, bem como as facilidades na aquisição de motos e carros por meio de financiamentos bancários, modificaram a realidade das cidades e criaram dificuldades na sustentação financeira de algumas linhas de ônibus. Cada vez mais o transporte público foi se restringindo aos trabalhadores assalariados que recebem vales-transportes, aos estudantes e aos menores de idade em geral.

E mais, na medida em que diminuíam os usuários pagantes aumentavam as concessões de gratuidades, impondo às empresas concessionárias de todo o Brasil o ônus desses benefícios. Pari passu a desaceleração econômica do país foi travando os reajustes tarifários contratuais, incompatíveis com a realidade financeira das famílias de baixa renda, em especial àquelas que foram obrigadas a morar em regiões periféricas distantes (pesa aí outro problema grave nas cidades, o da falta de moradias, que em breve também abordarei por aqui).  

Quando o gargalo financeiro estava mais apertado, impondo aos governantes debates cada vez mais técnicos, veio no ano de 2020 a pandemia do novo Coronavírus, que retirou do sistema de transporte coletivo muitos usuários, em especial os estudantes e trabalhadores da educação. Cidades maiores, como Belo Horizonte, viram-se obrigadas a reformular itinerários e horários para não ter que aumentar tarifas. Outras, como Brasília, repassaram às empresas subsídios financeiros maiores para manter o serviço diante da baixa arrecadação.

Ou seja, nos últimos anos o modelo de concessão de transporte público à iniciativa privada baseado unicamente na remuneração por tarifa deixou de ser economicamente viável, obrigando diversas prefeituras país afora a reformular seus contratos, passando a maioria delas à concessão do serviço atrelada à subsídios financeiros. Outras, com base em ferramentas jurídicas como a revisão por caso fortuito ou força maior, conseguiram repactuar o serviço para mantê-lo minimamente, ainda que desassistindo algumas linhas e comunidades menores.

 

E em Mariana? Bom, no caso da nossa cidade a situação é bem mais dramática. Isso porque, ao contrário de todas as outras da região, não há aqui um contrato de concessão capaz de ser formalmente revisado. Há também em Mariana um déficit financeiro anterior à pandemia provocado pelos longos períodos sem reajustes e adequações operacionais. Tudo isso, é bom registrar, em meio ao uso passional do tema em campanhas político-partidárias. O resultado é um serviço cheio de dissabores e insatisfações para todos: usuários, empresa e poder público.

 

Certo é que o serviço de transporte coletivo de passageiros de Mariana deve ser urgentemente licitado pela Prefeitura, de modo que a empresa operadora tenha em mãos regras e obrigações claras para o atendimento aos usuários, bem como garantias de retorno financeiro: disso ninguém discorda. O estabelecimento de um contrato transparente entre usuários, empresa e poder público é necessário para que haja impessoalidade e eficiência no serviço. Só discurso e medidas paliativas não resolvem, pois o assunto é técnico e socialmente impactante. Também não cabe ao Poder Judiciário resolver o problema que é da responsabilidade do Poder Executivo.

 

Nesse contexto surgiu nas últimas eleições a proposta da “tarifa zero”, que consiste na prestação do serviço com 100% de subsídio financeiro. Trocando em miúdos, a Prefeitura vai pagar com o dinheiro público todas as tarifas e fazer com o que os ônibus circulem sem cobrança direta aos usuários. Isso é possível e, ouso dizer, necessário! Além de desonerar o usuário habitual, vai tirar o ônus dos vales-transportes dos empregadores em geral, vai organizar o trânsito com a diminuição de carros clandestinos e de aplicativos, além de estimular novos usuários que atualmente usam veículos próprios. Em termos de mobilidade urbana e impacto social é uma grande iniciativa!

 

Contudo, alguns cuidados são essenciais para que tudo dê certo. O primeiro é que sejam feitos cuidadosos estudos preliminares de linhas, público e custos, inclusive projetados para os próximos anos. É preciso saber com exatidão o tamanho dos gastos e a capacidade de absorção estável pelo orçamento público. As vezes a verba não será suficiente para 100% da tarifa, mas conseguirá pagar 50%, por exemplo. Sendo verba pública os critérios de medição e pagamentos pelo serviço devem ser claros a de fácil fiscalização, além de definidos após debates com a Câmara Municipal e com a sociedade como um todo.

 

Depois, diante da notória dificuldade de a própria Prefeitura prover diretamente os serviços, já que para tanto é exigido expertise administrativa específica, pessoal treinado e infraestrutura que o serviço público municipal não dispõe, será preciso realizar uma licitação para a concessão dos serviços à iniciativa privada. Esse é um ponto chave: ao contrário do que alguns andam dizendo abertamente por aí, não é possível liberar o transporte para cooperativas e transportadores autônomos já contratados pela Prefeitura para outras demandas. À propósito, essa conversa cheira à direcionamento e casuísmo partidário.  

 

Por fim, mais do que planejar, licitar e pagar pelos serviços, deverá a Prefeitura criar setores e expedientes capazes de gerir tudo, em especial a adequada mediação e aferição da execução, tanto em quantidade, quanto em qualidade. O DEMUTRAN precisará receber um grande investimento em pessoal, tecnologia e logística.

 

Enfim, para o futuro imediato, de toda e qualquer forma, cumpre à Prefeitura promover os devidos estudos técnicos e licitar os serviços de transporte público coletivo de passageiros. Feito isso, poderá então definir que a remuneração à empresa concessionária deverá ser integralmente pelo usuário, como é feito hoje, ou pelo orçamento público, conforme a proposta “tarifa zero”. Neste último caso, poderá a Prefeitura custear tudo ou apenas parte, restando ao usuário completar o pagamento. O importante, conforme impõe a legislação, é que seja feito com zelo técnico, impessoalidade e formalidade contratual capaz de manter o seu contínuo funcionamento com qualidade por vários anos, independente de quem ocupe a cadeira de chefe do poder executivo. O transporte público é uma relação contratual que precisa ser estabelecida com responsabilidade e longe dos palanques políticos, considerando sobremaneira a sazonal dinâmica de mobilidade das cidades, da economia e do orçamento público.

(*) André Lana é advogado militante nas áreas de direito público e gestão social

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