O nosso samba fica para o ano que vem

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O mestre de bateria acordou triste. Chega até a janela e, timidamente, assobia notas de uma marchinha conhecida. A rua está completamente vazia. Não há coro para este Carnaval, e ele chora. “Quem sabe no ano que vem as coisas estarão melhores?”.  Pensa em voz alta, sabendo que é impossível existir alegria num ano que insiste em repetir o anterior.

Decide ficar longe do rádio, não liga a televisão e dispensa o celular. Festinhas clandestinas. É a vez do Bloco da Cloroquina. Enquanto isso a rua está vazia. Nada do vai e vem das crianças que sempre aguardam as instruções do mestre, para aprender os primeiros manejos dos instrumentos. Desde cedo, aprende-se que a bateria é o coração da escola, mas dessa vez não haverá um toque sequer. Das casas não se vê o entra e sai dos amantes da maior festa popular do país. As costureiras permanecem com suas máquinas silenciadas, porque esse ano não tem a correria dos ajustes de última hora.

As ruas centenárias não veem as cores dos enfeites. Moradores transitam sem dificuldades: não há barraquinhas, hotéis e restaurantes seguem vazios e a praça continua deserta. Nenhum turista. Sem vacina, a população sabe que a única máscara possível é contra a doença que se alastra.

Enquanto isso, a enfermidade faz a sua festa particular. Não pede licença e vai imponente, vestida de tentáculos, abraçando aqueles que cruzam o seu caminho. Arrasta os enfermos para o Bloco da Morte. Os efeitos mais conhecidos são dores no corpo, perda de olfato, alguma sequela ou a morte por asfixia. Mas há outros sintomas também desprezados: a angústia e a incerteza. Muita gente ainda sabe que corre o risco de perder um ente querido em decorrência de complicações da tal “gripezinha”. Depois de um ano de home office, o país pressiona cada vez mais para uma normalidade impraticável. Não há remédio imediato contra o desprezo alheio. Ademais, aos que se arriscam diante do desespero da falta de renda, nada se ouve das panelas vazias. Nessa festa que tem a rua como palco para congregar, mesmo que de forma efêmera, todas as classes, o certo é que o Bloco dos Miseráveis permanece invisível.

Diante da impossibilidade de mudar um cenário tão desolador, o mestre resolve caminhar, na primeira tarde de Carnaval, pelas ruas de pé-de-moleque. Sentado na espreguiçadeira de sua varanda, fecha os olhos e passeia pela avenida. Ele aprecia a alegria do Bloco dos Farrapos, aguarda o tradicional Bloco do Zé Pereira e segue o animado cortejo do Circovolante. Recolhe-se em casa, faz o ritual costumeiro, veste-se, calmamente, e chega a sua vez. Ouve as vozes em uníssono cantando o samba da escola querida. As ruas estão cheias e a bateria da escola encadeia o ritmo da festa. É um sonho bom, mas hoje o peito dói com a lembrança. Com os olhos marejados, levanta, pega papel e lápis, transforma a dor em arte. Quer chamar os companheiros, mas não sai do lugar. Rascunha umas notas, pensa no próximo enredo e imagina o pesadelo indo embora. “Se tirar da minha alma a esperança, o que me resta?”. E assim escreve um outro Carnaval. No seu enredo, todos os amores são possíveis, a vacina é para todos e os abraços não são virtuais. Vislumbra também uma geração mais próspera e com mais igualdade. “Ainda há tempo de abrir novamente a janela e ver o mundo sorrir”, diz a si mesmo, sabendo que, antes disso, há uma luta bravia lá fora a ser vencida por todos nós.

(*) Giseli Barros, professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana.

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