Cartas pra Mãe: "O preço da pressa"

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Mãe,

Aquele dia, no caminho pra roça, vi, de longe, um cachorrinho na estrada. Talvez morasse em algum sítio por perto. Talvez tivesse sido abandonado. Estava longe.

Nós tínhamos pressa e horário marcado, né, Mãe? Sem falar que, dentro da nossa caminhonete, ia outra cachorrinha. E a tranqueira toda que sempre levamos.

O cachorro da beira da estrada era amarelo. Está gordinho, pensei. Tem um dono por perto, me iludi. E fui, pelo caminho, rezando aos meus santos para que alguém pudesse parar e resgatá-lo, ver se estava tudo bem, oferecer comida. Fechei os olhos, pedi forte e seguimos nosso caminho.

A gente podia ter parado. Não, era arriscado, ele estava longe. E o que a gente faria com Lulu, que estava no colo? E o que faríamos com ele, já que nossa casa está cheia de cachorros? Não tinha jeito, consolei a culpa.

Três dias depois, no caminho de volta, vi um grupinho de urubus. Senti um frio na espinha: que não seja ele, pensei. Não posso dizer, com certeza, que era. Mas vi os abutres brigando por poucas carnes de um corpinho amarelo.

Pensamos tanto nas oportunidades, não é, Mãe? Naquela ideia de “não deixar o cavalo arreado passar”, porque ele só vem uma vez. Ou de cortar o queijo, quando temos a faca nas nossas mãos.

Mas pensamos, quase sempre, nas nossas próprias oportunidades: um trabalho, um bom negócio, um sonho pessoal. E talvez há que se pensar nas outras oportunidades: de ser útil, de ver além de olhar, de ousar mudar de planos e prioridades para estender a mão a alguém.

O que seria, mãe, daquele cachorrinho, se a gente tivesse parado, entrado no mato e o levado conosco? Mesmo com os riscos, com a pressa, com a chance de perder o compromisso que tínhamos?

Não sei se os urubus disputavam o cachorrinho que vi. Mas sei que deixamos de agir, tantas e tantas vezes, com a esperança de que alguém passe, alguém ajude, alguém saia da comodidade que nos prende.

Não sei se era ele, Mãe, mas dói a pressa e seu preço.

(*) Jamylle Mol é jornalista e marianense

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