Sobre a incapacidade de sentir

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“A vida é muito curta. Se você ficar de mimimi, não vive. Qual a graça de ficar da janela vendo a banda passar? Se alguém discordar, faça um sinal com aquele dedo (Sabe qual é?) e siga em frente. Há quem não saiba viver e fica por aí com ares de coitadinho. Esse papo de lockdown já deu. Ninguém mais se importa com números. E é bem provável que a mídia se aproveita mesmo disso e fica apoiando oportunistas que querem prejudicar o país. No fim das contas, pode ser tudo forjado. Pandemia? Os vírus sempre estiveram por toda parte, e até duvido de que essa vacina sirva para alguma coisa. Se alguém desejar, pague por ela. Mas largue do meu fim de semana com os amigos. Tenho mais o que fazer. Sei das minhas atribuições. Sou cidadão de bem. Deixe de ser estraga prazeres, só porque decidiu agir como um chato de galocha.

Sabe de uma coisa? Não vou pagar essa conta sozinho. Folgados. Gente que não quer trabalhar. Panfletários de araque. É muita ingenuidade ficar pensando que máscara pode proteger alguém de uma doença que todos nós contrairemos algum dia. Qualquer enfermidade pode matar. No entanto, cientistas decidiram que o isolamento social é necessário. Fácil engendrar teorias, num ambiente com ar-condicionado, com leituras extravagantes, gastando o dinheiro público. É por ações como essas que esse país não vira uma potência. Se eu fosse o presidente do Brasil, acabava com essa mamata. Já passou da hora de pôr fim nessa bandalheira, dispersar essa gente toda das universidades. Pessoal que adora uma arruaça. Trabalhar mesmo, quem quer?

Eu falo mesmo. Não sou desses que ficam por aí teorizando catástrofes. Vejo as coisas como elas são. O mundo evoluiu, meu caro! Já teve uma época em que as pessoas ficavam um ano inteiro chorando. Você saía de casa e era obrigado a conviver com o outro todo vestido de preto, trazendo mortos do além. Era um luto eterno. Faça-me o favor! Para tudo há limite. Eu falo mesmo. Antes ele do que eu. Sacou? Por mim, meus filhos estariam na escola. São todos saudáveis. Agora, eu tenho que sustentar professor de férias. Esse país é mesmo uma piada.

Outro dia, eu discordei de um camarada, dentro do supermercado. Começou a reclamar do preço da carne. Gritou que a cesta básica está um absurdo de cara, e que pobre não compra gás de cozinha, pois não há dinheiro. Notei que ele queria palanque. Foi chamando a atenção de quem passava. Virou atração, e eu ficando cheio daquilo, porque era bem um sábado bacana. Eu estava lá só para comprar uma carninha para o churrasco. Você sabe como é, a gente acorda, depois de uma semana inteira de trabalho, decide confraternizar. Mas tinha o cara, dentro do supermercado, com esse discurso de gente mole. Falei umas verdades. Eu falo mesmo. Essa gente estraga o país. Se fosse o presidente, não dava um de bonzinho, não. Eu, numa canetada só, lascava a ditadura nesse barraco. Colocava o país nos trilhos. Queria ver alguém gritar dentro de supermercado, na praça e aonde quer que fosse. Fechava os jornais e punha fogo em livro subversivo. Não gosto de gente mansa. Eu falo mesmo.

Encontrei uma amiga mais cedo e perguntei o porquê de seu sumiço. Acho até que você a conhece. É uma bonitinha que sempre passa por aqui. A mulher começou a choramingar. Disse que ficou uns dias no hospital e que a gente fica na farra, aglomerando, que ninguém respeita mais nada. Da boca dela só saiu tragédia. Por fim, fiquei pensando sobre a real tragédia que é esse país. É muita gente mole. Se médico, equipe de enfermagem pega Covid, que culpa eu tenho? E os pacientes? Podem morrer, não é? Eles estão cheios de comorbidades. É isso mesmo, meu caro. Acho que ela exagerou demais. Coisa de mulher. É muito mimimi. Deve ter conversado com duas pessoas e fala que foram 20 infectados numa semana. É isso. Coisa de mulher. Então, amigo, diga você alguma coisa”.

Durante o monólogo, pensei em tascar na cara do sujeito umas verdades. Meu estômago revirava e uma dor de cabeça começava a me incomodar. Sentia uma repulsa a tudo que chegava aos meus ouvidos, mas refletia, ao mesmo tempo, sobre a ineficácia do meu discurso para aquela pessoa que não desejava ouvir nada além do que ele já havia vociferado. Olhei para o relógio. Quis fingir um compromisso urgente. Mas, nesse ínterim, assim que decidi verbalizar as minhas discordâncias, eis que surge um vira-lata na esquina, bem pertinho de nós. O cão, muito esperto e ligeiro, mirou aquela espécie de poste humano e urinou com gosto. Sem demora, deu no pé. Foi mais inteligente do que eu. Livre do colóquio desagradável, vi o sujeito bradar todo tipo impropério ao universo, enquanto segurava a barra da calça, molhada, e, a cada dois passos, sacudia os pés. Permaneci, por algum tempo, no mesmo lugar. Enquanto a cena se desfazia, pensava: cachorro sensato.

(*) Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana.

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