Criatório marinho

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“Daqui, meu escritório, de onde sempre escrevo, (…) avisto (…)

o imenso e mutante mar que me fascina e atemoriza (…)”.

(Ana Miranda, de Fortaleza, na crônica “Aves em Brasília”, “Correio Braziliense” de 5-7-2009.)

 

“Mas em noites tremendas, quando ulula/

O vento sobre o mar, e lá nos longes/

Os homens vivos que navegam tremem/

(……………………………………………………………).”

(Alfonsina Storni, no poema “Cemitério voltado para o mar”.)

Entardece na Praia do Francês. Estou diante do mar, bebendo cerveja, de bermuda, camisa velha e chapéu panamá (legítimo, hecho en Ecuador) que a poeta Kori Bolivia me deu de presente. Sou um idoso aposentado, bestando na praia. Esta hora –  escreveu Gilberto Amado, nas suas memórias – é “a hora música da tarde”.  É a hora em que as musas “baixam”. A música, aqui, é a canção das ondas batendo nos arrecifes e nas areias adornadas de pequenas conchas, que meus netos procuram. A música aqui é o marulhar contínuo que vem de Portugal, do Tejo, da Torre de Belém, há séculos. E da Praia do Restelo, aquela do camoniano Velho do Restelo.

Que francês era esse, que deu nome a esta bela e panorâmica paisagem no município de Marechal Deodoro?  Maceió não fica muito longe; coisa de cinco léguas. Dizia o saudoso poeta e prosador Lêdo Ivo que o francês naufragou por estas bandas, ali pelo século XVI, e passou a namorar as bonitas índias de Alagoas. Gostou e ficou, o felizardo. Certamente deixou filharada.

Eu, que não sei nadar nem uso “um velho calção de banho” dos que Vinicius de Moraes usava em Itapuã, só fico olhando o mar-oceano e imaginando cenas talássicas. Dou asas à imaginação, sou meio imaginoso.

Estou longe das montanhas, das serras, do mundo rural, do cerrado, das écoglas, pastorais e madrigais. O verde-azul do mar me domina nesta hora quase crepuscular.

Não estou diante de um cemitério marinho, que inspirou “O cemitério marinho”, famoso poema de Paul Valéry, que o poeta José Jeronymo Rivera traduziu com tanto esmero (“Os mortos estão bem sob essa terra/ Que os reaquece e seca o seu mistério”).

O mar que tenho diante de mim – um homem de 77 anos – é uma cornucópia de vida-  pulsante, fremente, fantástica. Uma embarcação cheia de gente passa apitando, com suas bandeirolas.

Lição de coisas: Ivo viu a uva; vovô bebe cerveja; os netos catam conchas; gaivotas pairam sobre as águas, em direção ao horizonte.

E lá embaixo seres marinhos, alguns mitológicos, proclamam as maravilhas da Criação e a diversidade encantatória das criaturas. Não me restrinjo ao Oceano Atlântico que banha as costas brasileiras. Fecho os olhos e mergulho também no Oceano Pacífico, no Oceano Índico, no Oceano Antártico. Planeta azul de muita água. Tenho este resto de tarde para vadiar e a cerveja –eu lhes prometo –  não me levará a imaginar belas sereias, como as que tentaram Ulisses voltando para os braços de Penélope, em Ítaca, depois da Guerra de Tróia. Sereias são atraentes, mas perigosas. Até a sedutora Iara amazônica, metade peixe, metade mulher, “envolta na cabeleira verde”, como escreveu a esquecida Yara do Rio, no seu já raro pequeno livro “O maravilhoso na Amazônia”, que a Editora Alba, do Rio, publicou em 1940.

                                                                                                ***

O que imagino ver, nesse mundão de abissais águas oceânicas? Vejo logo a morsa, que nada bem e pode pesar até uma tonelada.  É chamada vaca marinha e pode ter sete metros de comprimento. A natureza a dotou de presas enormes, que a ajudam no deslocamento no gelo, na defesa e na caça. O macho tem grandes e longos caninos superiores.

 O pinguim é uma graça. Os machos é que chocam os ovos. Parece que usam smocking. São bichos elegantes, de ar aristocrático.

Já as baleias amamentam as crias. Criaturas gigantescas, elas nos remetem à Moby Dick, a grande baleia branca, imortal criação literária de Herman Melville (1819-1891), um escritor que morreu esquecido e abandonado, em Nova York. E aqui me lembro também de Hemingway: “O velho e o mar”, outro clássico.

E os tubarões? Esses bichões dão um medo danado na gente. São, em geral, terríveis predadores. Tubarão-tigre, tubarão-branco, tubarão isso, aquilo e aquiloutro. São 380 espécies em todo o mundo; no Brasil temos 80 espécies. Melhor não chegar perto. Os tubarões de menor porte são chamados cações. Na dúvida, se o bicho é tubarão ou cação, recomenda-se atentar para o anexim da sabedoria popular: “Se a gente come ele, é cação; se ele come a gente, é tubarão”.

Há poucos dias vi na internet que, na costa de Tauranga, na Nova Zelândia, 19 turistas estavam passeando de barco quando avistaram, bem próximo, um tubarão- baleia. Tubarão-baleia, eu nunca tinha ouvido falar desse animal! Homessa! Atentei para a foto. Vi um belo espécime, azulado de um azul claro, com pintas brancas, bichão bonito mesmo, de cerca de 20 toneladas.  Não tenham medo: apesar do nome e do tamanho, o massa-bruta oferece pouco perigo aos humanos, informa o noticiário. Não obstante, melhor passar ao largo, j’ouviram? Cá eu fico sossegado: jamais irei à Nova Zelândia ou à Austrália, à Groenlândia ou a Madagascar, não tenho mais idade para essas aventuras. Prefiro ler, pela quarta vez, “As minas do Rei Salomão”, de H. Ridder Haggard, obra-prima que até o refinado Eça de Queiroz traduziu.

Fico encantado com as grandes tartarugas marinhas e seus filhotes. Eu as acompanho com olhar amoroso e me lembro do festejado Projeto Tamar, que cuida dessas longevas criaturas. Seus líderes, militantes e voluntários merecem honras de portaló e cerimonial de gala.

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Abro os olhos, volto à tona. Os pais cuidam dos meus netos, um menino e uma menina: agora estão os quatro nadando, aproveitando o resto da tarde.  Peço ao garçom mais uma garrafa de cerveja e umas agulhinhas fritas, um bom tira-gosto. Depois mergulho de novo no meu aquático mundo de realidade e imaginação. Desço aos pélagos mais profundos, como se fosse um experiente mergulhador da Marinha do Brasil…

É a vez da medusa, também chamada urtiga-do-mar, água-viva, cansanção, até alforreca. Sua mordida dói pra caramba.  Pouco adiante, a caravela, que é uma temida criatura de muitos tentáculos, peçonhenta que só, pode matar o freguês. Por sua vez, a orca é um mamífero cetáceo muito agressivo, carnívoro, cauda vigorosa e dentes fortes e agudos. Melhor contemplar a sensacional flora marinha. Fauna e flora se interpenetram   fantasticamente para formar um santuário natural, digno da imaginação de Jules Verne.

Já o hipocampo é um gênero de peixe a que pertence o cavalo marinho. Tem lá sua graça. Temos ainda a perigosa moréia, a barracuda, o peixe-espada, a arraia que parece voar. O polvo é essa criatura feia e gosmenta. Na panela, é acepipe. Na caldeirada, é peça de sustança.

Melhor ver peixes de todos os tamanhos, formas, cores, uma fartura reluzente. Cardumes e cardumes. Dos mais bonitos é o budião-azul, quase em extinção. Dá gosto ver o budião-azul, senhores. É também chamado peixe-papagaio, nome até poético. Peixes de montão. Parece que estou no Oceanário de Lisboa, onde estão perpetuados trechos de poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen e outros autores siderados pelo mar. Estive lá em 2013, com mulher, filho e nora.

Bonito também é o cangulo-rei. A feiúra ficou para o peixe-cofre, a arraia-torpedo, a moréia verde que parece cobra, a arraia-jamanta e um tal peixe-pedra. O peixe-pedra é disforme, tão feio que dá dó.   Sobrou feiúra também para um peixe de nome mangangá (Scorpaena plumieri).

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Em certo momento dos meus devaneios de velho combatente da infantaria deste mundo, olhando a belezura daquele panorâmico mar nordestino, a praia ainda com remanescentes   banhistas, lembrei-me, enquanto tomava mais um gole de cerveja, de um trecho do conto “O festival”, do profundo escritor H. P. Lovecraft.

Já de volta da viagem, dias depois, fui conferir, no meio da minha livralhada. O belo trecho é este, de depois de uma epígrafe de Lactantius, em latim:

“Eu estava longe de casa e o encanto do mar do Leste me envolvia. Na luz do crepúsculo ouvia-o batendo sobre as rochas e sabia que ele estava logo depois do morro onde os salgueiros retorciam-se contra o céu que clareava e as primeiras estrelas da noite”. Essa passagem com o som do mar está no livro “A tumba e outras histórias”. Quase todas arrepiantes, pois, como se sabe, Lovecraft (1890-1937) foi um mestre consumado do horror e da fantasia gótica, do sobrenatural e do oculto.

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Mas não só o tal peixe-pedra e o tal mangangá do Francês me assustam, nesta minha bestagem marinha. Mais assustado fico eu, um velho, um cabeça-branca, quando topo com o próprio Poseidon, o deus dos mares da mitologia grega, filho de Cronos e Reia. Poseidon em pessoa, vejam as senhoras e os senhores! Portentoso, alto como o Colosso de Rodes, majestático, barba longa, cara de poucos amigos lá no alto, lá no Olimpo. Bem, acho que ando bebendo demais da conta…. Exagerei um pouco hoje. Sim, é o Netuno dos romanos. Traz na mão o célebre e letal tridente. Dá um medo danado na gente. Melhor cair fora. Mas logo aparece um tal kraken. Que diabo é isso, escriba? Diz-que é também um ser mitológico de antigas e absconsas teogonias. Um misto de polvo e lula, raivoso, feio como o capeta, grandes olhos malvados. Verdadeira assombração que, fosse em terra, surgiria ao pé de três sinistras gameleiras, toda sexta-feira da quaresma, por volta da meia-noite. Coisa das trevas medievais com suas medonhas fogueiras inquisitoriais.  É um monstro gigantesco, destruidor e feroz, com muitos tentáculos. Esconjuro! Cáspite! Vade retro, kraken!  Saio do pesadelo, abro os olhos, ufa!, tomo mais uns goles de cerveja, a noite está caindo.

Só me faltou ver uma daquelas tenebrosas, gigantescas serpentes marinhas imaginadas pelo medo dos navegadores dos séculos dos Descobrimentos Marítimos e que faziam naufragar os navios. O medo atiça a imaginação. A literatura é rica nesse particular: Poe, Dickens, Defoe, Maupassant, Lovecraft, Hoffmann, Conan Doyle, H. G. Wells, tantos outros, mais o autor setecentista inglês Horace Walpole, autor do romance “O Castelo de Otranto”.

Ah, o pequeno cavalo marinho voltou, vejam só!  Está perto dos arrecifes, fazendo gracinhas, dando até cambalhotas. Metade peixe, metade cavalo.   Diz-que a graciosa e exótica criatura não faz mal a ninguém, até brinca com a criançada. Parece um mimoso   camafeu para uso de moça donzela.

Hora de picar a mula, como dizemos lá em Minas. Isto é, ir embora, pegar estrada. Picar é dar uma esporeada na mula. Sem machucar a pobre montaria, criatura de Deus. Fim da navegação por fabulosos mares. As primeiras estrelas vão surgir nesse céu de Alagoas.  Veremos Aldebarã, poeta Eugenio Giovenardi? Bora, meninada!

Vou tomar a saideira e dar esta prosa por encerrada. E nem falei de caravelas, ouro, prata, pedras preciosas,  marfim, pérolas de Ofir , sedas e porcelanas da China   e especiarias a bordo,  Vasco da Gama, Fernão de Magalhães  e Pedro Álvares Cabral, Cristóvão Colombo e Américo  Vespúcio, a ilha do tesouro de Robert Louis Stevenson e suas viagens pelos Mares do  Sul, o intrépido Capitão Cook rumando para a Austrália, o navegador-corsário Sir Francis Drake cortejando Elizabeth I com ouro e jóias soberbas; e ainda há muitas  aventuras de piratas, corsários, bucaneiros e flibusteiros. É um nunca acabar. E a vida, posto que bela, é curta.

O mar – como diriam Aurélio Buarque de Holanda e Paulo Rónai –  é um mar de histórias…

(*) Danilo Gomes, marianense, escritor, advogado e jornalista, membro da Academia Mineira de Letras e cidadão honorário de Belo Horizonte.

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