O Richard Burton que não conheceu Elizabeth Taylor
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Muita gente se lembra do ator galês Richard Burton, que foi marido da bela atriz Elizabeth Taylor. Em filme famoso, baseado em peça de Shakespeare, ele foi Marco Antônio e ela Cleópatra, ficando Rex Harrison com o papel de Júlio César.
Mas não é esse ator o personagem deste artigo. Nosso personagem é seu homônimo Richard Francis Burton, que nasceu há 200 anos, em 19 de março de 1821, em Torquay, Devon, na Inglaterra.
Foi ele um dos maiores aventureiros de todos os tempos. Mas não um simples aventureiro. Inscreve-se na categoria dos grandes exploradores de recônditos e exóticos países da Ásia e da África, vindo também parar na América do Sul.
Tornou-se um famoso desbravador e estudioso de terras, rios e lagos. Suas proezas e sua cultura classificaram-no como uma das figuras mais fascinantes do século XIX, um século de figuras fascinantes. Falava vários idiomas e complicados dialetos. Estudou usos e costumes, muitas vezes de natureza sexual e ritual, de povos asiáticos e africanos. Corajoso, audaz, gostava do perigo. Perito na arte do disfarce, desde que servira na Índia como militar, no posto de capitão, visitou a cidade sagrada de Meca, proibida a não-muçulmanos, disfarçado de afegão (ele falava árabe). Visitou também, sob disfarce, a sagrada Harar (perto de Adis Abeba), capital da Somália, de onde nenhum outro homem branco havia saído com vida.
Esse homem extraordinário foi escritor, tradutor, linguista, geógrafo, orientalista, diplomata, agente secreto, poeta, espião e agente secreto do Império Britânico. A esses títulos, acrescente-se o de exímio espadachim, à Errol Flynn (aquele do cinema).
Foi um Indiana Jones do século XIX. (Quem sabe serviu de um dos modelos para o moderno personagem de cinema?)
Burton serviu como cônsul da Inglaterra na ilha de Fernando Pó (atual Bioko, hoje território da Guiné Equatorial), Damasco, Santos (Brasil) e Trieste (Itália). No Brasil, percorreu o rio São Francisco, passando boas temporadas em Minas Gerais e na Bahia. Visitou a cachoeira de Paulo Afonso e a foz do Velho Chico, entre Alagoas e Sergipe.
Em matéria para a Folha de S. Paulo, sucursal de Minas Gerais, em 02 de novembro de 2017, Túlio Santos relatou que, em 07 de agosto de 1867, Richard Burton entrava no rio das Velhas, em Minas, num par de velhas canoas remendadas. Escreveu o jornalista: “Tratava-se de uma das últimas grandes aventuras de Burton, descendo o rio mineiro e seguindo pelo rio São Francisco até o mar, entre junho e novembro, cruzando o interior de um Brasil que profetizava como país do futuro”.
Em Minas, o explorador aventureiro visitou São João del-Rey, Diamantina, Sabará, Matozinhos e outras localidades.
Realizou viagens sob os auspícios da célebre e respeitada Royal Geographical Society, sediada em Londres, a conservadora e vitoriana Londres dos romances de Charles Dickens. Procurou as nascentes do rio Nilo, que ficam no lago Victoria. Com John Haning Speke explorou a região dos Grandes Lagos, no tórrido coração da África (mais tarde os dois exploradores se tornaram raivosos rivais). Burton descobriu o lago Tanganica. Muitas vezes viajou, sob sigilo e enfrentando vários perigos, ao misterioso reino de Daomé.
Richard Francis Burton traduziu para o inglês Os Lusíadas, de Camões, bem como livros escritos em árabe e persa, dentre eles As mil e uma noites, numa versão não censurada, acrescentando numerosas notas de natureza sexual e até mesmo de cunho pornográfico. Sob o risco de ser preso (como Oscar Wilde), traduziu do árabe e de outras línguas manuais eróticos, dentre eles o Kama Sutra, impressos às suas custas. Era um curioso obcecado, um voyeur. Foi muito combatido por isso, numa severa comunidade britânica vitoriana, tornou-se uma figura polêmica, mas apesar disso a própria rainha Victoria o agraciou com o título de Sir, cavaleiro do reino, em 1886.
Casou-se com Isabel Arundell, uma católica inglesa. O casal não teve filhos. Ela batalhou para que o marido saísse de foco e fosse nomeado cônsul em Santos, na província de São Paulo. Nessa época, o casal fez amizade com José de Alencar e sua mulher, Georgiana Cochrane Alencar. Isabel Arundell (ajudada pelo marido poliglota) traduziu Iracema para o inglês.
No seu primoroso livro A vida de José de Alencar (José Olympio, 1979), Luís Viana Filho nos informa, à pág. 209:
“Conta Sussekind de Mendonça que certa vez, em 1867, tendo Alencar embarcado para Santos, encontrou-se a bordo com Salvador de Mendonça, então na floração dos trinta anos, e puseram-se a discretear até se darem conta de que chegara a hora do desembarque. Tinham varado a noite”.
Um dos livros do nosso personagem intitula-se “Os altiplanos do Brasil”, decorrência da viagem de 1867.
Richard Burton não gostou da longa temporada na Itália, na cidade de Trieste. Sua mulher estava por trás dessa manobra política. O aventureiro e inquieto intelectual recebeu aquela missão como um exílio, comparando-se ao poeta romano Ovídio, o autor de Tristia, obra gestada durante seu exílio numa modesta cidade portuária no delta do rio Danúbio. O cônsul, notório aventureiro condenado a uma vida sedentária, fez uma analogia entre Tristia e Trieste. Era um peixe fora d’água, um cosmopolita explorador de mundos acorrentado a um rochedo.
Quando foi publicado pela Companhia das Letras, em 1991, li a biografia de Sir Richard Francis Burton esplendidamente escrita por Edward Rice. O robusto volume está metido na minha livralhada, em lugar incerto e não sabido. O público leitor brasileiro conta também com um livro que não li: O Brasil de Richard Francis Burton (1865-1868), de Leonildo José Figueira (Novas Edições Acadêmicas).
Nosso brilhante personagem morreu em Trieste, de ataque cardíaco, em 20 de novembro de 1890.
Existe no mercado mineiro uma cerveja nossa, nacional, chamada Captain Burton. O capitão, como bom inglês, era um apreciador entusiasmado da festejada loura.
Com locução de Gael Pereira, para a Agência Primaz, este texto, de autoria de Danilo Gomes, foi escrito em Brasília, no dia 19 de março de 2021, ano que marca o bicentenário do nascimento de Sir Richard Francis Burton.