Então você quer que eu fale da minha vida?

Quinta-feira. Sol quente e céu azul. Mochila nas costas. Bloquinho e gravador nas mãos. Saí do centro histórico da cidade em direção ao bairro São Pedro, à procura de uma ruazinha escondida entre a estrada que leva até a BR e a que chega ao hospital público.

O morro é comprido, as casas não têm números, nem campainhas. As portas estão, quase todas, destrancadas. As janelas, muitas vezes cobertas de papelão ou pano, não têm trincas. Bati na porta da terceira casa, como orientou o rapaz da venda mais próxima.

– É aqui que mora a Dona Dionísia? Repeti alto para que a senhora que me recebeu pudesse ouvir.

– Não. A Dionísia mora naquela casa ali, sem pintar…

Nas outras janelas, os vizinhos se amontoavam, olhando com curiosidade a estranha visita. Subi uma pequena escada que deu para uma porta aberta. Não esperei muito, até que uma senhora com um lenço florido na cabeça apareceu com um ar desconfiado, limpando as mãos num avental branquíssimo, rasgado nas pontas.

– Dona Dionísia?

– É ‘ieu’, sim.

– Vim aqui conversar um pouco, a senhora está ocupada?

– Não estou, não, fia. Vem aqui pra dentro, pode sentar aí. É uma alegria!

Depois de um abraço desses largos, como se fôssemos velhas conhecidas, mostrou um pequeno sofá, numa sala improvisada na entrada da casa. Sem saber ao certo o que dizer, com toda a inexperiência que trazia de brinde, perguntei sobre os gatos de estimação que dormiam por ali, contei que estava procurando boas histórias e que queria ouvir a dela.

– Tenho um filho que é poeta… Agora, ele está trabalhando como catador de papel, mas, daqui a pouco, ele chega. Eu sei histórias também, sei cantigas, mas o Zé, meu filho que é poeta, sabe umas mais bonitas que eu. Você não prefere esperar por ele?

Expliquei que queria ouvir a sua história, sobre a sua infância, juventude, sobre os filhos, os amores, as alegrias…

– Então, você quer que eu fale da minha vida? – Perguntou.

– Quero.

– Mas isso é uma alegria!

Com as mãos no rosto, sentada ao meu lado, Dona Dionísia começou a cantarolar alguns versos que repetiria muitas vezes ao longo das entrevistas-conversas e desarmou, com palavras simples e uma coreografia quase infantil, qualquer insegurança dessas que chegam em todo começo e encontro.

Algumas tardes de maio. Sempre a mesma cortina improvisada com um pano vermelho cobrindo a janela. Os gatos cochilavam sobre o armário, indiferentes. Do quintal do vizinho, aquele cheiro de lenha queimada coloria, de cinza, o céu azul e a parte de trás da igreja São Pedro.

Entre cantigas populares e orações, relembramos 88 anos que construíram aquela senhora sentada na cadeira, com suas mãos enrugadas e olhos distantes. De tudo – idades, pessoas, manhãs na roça, despedidas e chegadas –, o que se fez lembrar. Entre todos os muitos dias que compõem uma vida, os bonitos e grandes o bastante para caberem no meu gravador.

No primeiro dia, apresentação e conversa. Conheci a casa e seus quatro cômodos. Os retratos pendurados na parede emolduram um abraço dos seus que já não existem mais. Vi panelas areadas no fogão e uma bicicleta velha, infantil, destoando do restante da casa idosa.

Durante a conversa, duas crianças – os netos – ficaram sentadas no chão. O menino, mais velho, remendava o tênis com cola branca. A menina, pequena, brincava com uma escova de roupas. Ambos concentrados no próprio mundo, alheios a tudo que a avó contava e cantava para mim. A essa altura, a casa já tinha cheiro de lar, tão minha quanto de todos que ali moravam: muitos. Um abraço de despedida e a promessa de voltar no dia seguinte.

– Às vezes, tenho um refrigerante aqui em casa. Hoje, não. Nem café tem. Uma pena.

– Não se preocupe, Dona Dionísia.

No dia seguinte, ao chegar à rua escondida que era a terra de Dona Dionísia, eu já sabia o que encontrar naquele presente constante: rotina certeira de um cotidiano comum. Reencontrei o meu lugar no sofá, a cortina e os retratos – hoje, sem pó –, vi Dona Dionísia com uma roupa engomada e os cabelos bem penteados debaixo do lenço de seda: tão velho quanto tudo que há ali.

– Ficou com saudade de mim, Dona Dionísia?

– Fiquei tanto que não tirei o olho da rua, pensando na hora de você chegar!

Abraço bom de reencontro. Perguntas em punho, gravador ligado e histórias menos alegres que a do dia anterior. A infância, agora, não era tão boa de se lembrar, nem os maridos e filhos, tão perfeitos.

Seria a hora de recordar os dias menos bonitos, as humilhações entre os sorrisos de bom dia, a fome que às vezes entrava na casinha de pau a pique. Tinha saudade. Lembrou o sobrenome dos pais e esqueceu a própria idade. Inventou cantigas e repetiu outras tantas. Contou do dia em que conheceu seu Deus: milagroso.

Os dois meninos continuavam no chão, como antes. Junto a eles, dois filhos, uma neta, um neto e uma nora de Dona Dionísia assistiam à entrevista-conversa, orgulhosos da mãe-vó-sogra e do passado que ela contava. Relembraram “causos”, descreveram os muitos lugares em que moraram, as dificuldades e as alegrias que traziam com eles. Corrigiram datas e idades, contaram mais de 20 netos e bisnetos como novos nomes da família, relembraram os que morreram e os que moram longe.

– Canta aquela, mãe, que a senhora cantava quando eu era pequeno…

Cantaram e ouviram. Como antes.

Tarde encerrada, lembranças mais teimosas em sair da gaveta, gravador desligado e bloquinho na mochila.

– ‘Fio’, corre ali e busca um refrigerante, diz que depois eu passo lá. Pede pra dividir na hora de pagar. Um só. – Pediu Dona Dionísia.

Indefesa ao agrado, revezei os copos com a família e bebi o refrigerante meio suco, comprado à prestação.

Antes de ir embora, poses para a câmera fotográfica. Fotografei os gatos no telhado e a parede sem pintura. Uma, duas, três fotos de Dona Dionísia cantando e fazendo pose enquanto afinava a voz no “quando eu era pequenina, jogava bilboquê…”. Uma foto de família com a mãe ao centro e pronto.

– Por que ‘cê’ escolheu ‘eu’ para contar a minha história? – Perguntou.

– Porque a sua história é especial, Dona Dionísia.

– Não ‘tô’ falando? A vida é boa demais e foi é Deus que trouxe você aqui…

Já virava a esquina e todos: Dona Dionísia, filhos, netos e bisneta, estavam ainda acenando. Quis voltar e agradecer de novo pela confiança, pela porta e coração abertos, pelo brinde nos melhores copos da casa. Agradecer por terem olhado para a rua para me esperar, pela boa vontade em compartilhar a vida, pela bondade presente entre os tijolos sem pintar que eu pude conhecer.

À noite, em casa, ouvi as gravações e transcrevi inúmeras vezes que “a vida é boa” e o “mundo é ótimo”. Ao olhar as fotos, gato preto e gato branco no telhado da casa, Dona Dionísia em preto e branco do lado de dentro, na sua cadeira perto do meu lugar no sofá. Em cor, os olhos dela ficam azulados. Na foto de família, filhos, netos, bisneta e agregados. Todos sorriem largo. Dona Dionísia, não: em nenhuma foto e em momento algum nessas tantas horas de uma conversa alegre, ela sorriu. Feliz.

Se Dona Dionísia tem medo? Só do avião que nunca conheceu.

Jamylle Mol é marianense e jornalista