Depois de um abraço desses largos, como se fôssemos velhas conhecidas, mostrou um pequeno sofá, numa sala improvisada na entrada da casa. Sem saber ao certo o que dizer, com toda a inexperiência que trazia de brinde, perguntei sobre os gatos de estimação que dormiam por ali, contei que estava procurando boas histórias e que queria ouvir a dela.
Expliquei que queria ouvir a sua história, sobre a sua infância, juventude, sobre os filhos, os amores, as alegrias…
– Então, você quer que eu fale da minha vida? – Perguntou.
– Quero.
– Mas isso é uma alegria!
Com as mãos no rosto, sentada ao meu lado, Dona Dionísia começou a cantarolar alguns versos que repetiria muitas vezes ao longo das entrevistas-conversas e desarmou, com palavras simples e uma coreografia quase infantil, qualquer insegurança dessas que chegam em todo começo e encontro.
Algumas tardes de maio. Sempre a mesma cortina improvisada com um pano vermelho cobrindo a janela. Os gatos cochilavam sobre o armário, indiferentes. Do quintal do vizinho, aquele cheiro de lenha queimada coloria, de cinza, o céu azul e a parte de trás da igreja São Pedro.
Entre cantigas populares e orações, relembramos 88 anos que construíram aquela senhora sentada na cadeira, com suas mãos enrugadas e olhos distantes. De tudo – idades, pessoas, manhãs na roça, despedidas e chegadas –, o que se fez lembrar. Entre todos os muitos dias que compõem uma vida, os bonitos e grandes o bastante para caberem no meu gravador.
No primeiro dia, apresentação e conversa. Conheci a casa e seus quatro cômodos. Os retratos pendurados na parede emolduram um abraço dos seus que já não existem mais. Vi panelas areadas no fogão e uma bicicleta velha, infantil, destoando do restante da casa idosa.
Durante a conversa, duas crianças – os netos – ficaram sentadas no chão. O menino, mais velho, remendava o tênis com cola branca. A menina, pequena, brincava com uma escova de roupas. Ambos concentrados no próprio mundo, alheios a tudo que a avó contava e cantava para mim. A essa altura, a casa já tinha cheiro de lar, tão minha quanto de todos que ali moravam: muitos. Um abraço de despedida e a promessa de voltar no dia seguinte.
– Às vezes, tenho um refrigerante aqui em casa. Hoje, não. Nem café tem. Uma pena.
– Não se preocupe, Dona Dionísia.
No dia seguinte, ao chegar à rua escondida que era a terra de Dona Dionísia, eu já sabia o que encontrar naquele presente constante: rotina certeira de um cotidiano comum. Reencontrei o meu lugar no sofá, a cortina e os retratos – hoje, sem pó –, vi Dona Dionísia com uma roupa engomada e os cabelos bem penteados debaixo do lenço de seda: tão velho quanto tudo que há ali.
– Ficou com saudade de mim, Dona Dionísia?
– Fiquei tanto que não tirei o olho da rua, pensando na hora de você chegar!
Abraço bom de reencontro. Perguntas em punho, gravador ligado e histórias menos alegres que a do dia anterior. A infância, agora, não era tão boa de se lembrar, nem os maridos e filhos, tão perfeitos.
Seria a hora de recordar os dias menos bonitos, as humilhações entre os sorrisos de bom dia, a fome que às vezes entrava na casinha de pau a pique. Tinha saudade. Lembrou o sobrenome dos pais e esqueceu a própria idade. Inventou cantigas e repetiu outras tantas. Contou do dia em que conheceu seu Deus: milagroso.
Os dois meninos continuavam no chão, como antes. Junto a eles, dois filhos, uma neta, um neto e uma nora de Dona Dionísia assistiam à entrevista-conversa, orgulhosos da mãe-vó-sogra e do passado que ela contava. Relembraram “causos”, descreveram os muitos lugares em que moraram, as dificuldades e as alegrias que traziam com eles. Corrigiram datas e idades, contaram mais de 20 netos e bisnetos como novos nomes da família, relembraram os que morreram e os que moram longe.
– Canta aquela, mãe, que a senhora cantava quando eu era pequeno…
Cantaram e ouviram. Como antes.
Tarde encerrada, lembranças mais teimosas em sair da gaveta, gravador desligado e bloquinho na mochila.
– ‘Fio’, corre ali e busca um refrigerante, diz que depois eu passo lá. Pede pra dividir na hora de pagar. Um só. – Pediu Dona Dionísia.
Indefesa ao agrado, revezei os copos com a família e bebi o refrigerante meio suco, comprado à prestação.
Antes de ir embora, poses para a câmera fotográfica. Fotografei os gatos no telhado e a parede sem pintura. Uma, duas, três fotos de Dona Dionísia cantando e fazendo pose enquanto afinava a voz no “quando eu era pequenina, jogava bilboquê…”. Uma foto de família com a mãe ao centro e pronto.
– Por que ‘cê’ escolheu ‘eu’ para contar a minha história? – Perguntou.
– Porque a sua história é especial, Dona Dionísia.
– Não ‘tô’ falando? A vida é boa demais e foi é Deus que trouxe você aqui…
Já virava a esquina e todos: Dona Dionísia, filhos, netos e bisneta, estavam ainda acenando. Quis voltar e agradecer de novo pela confiança, pela porta e coração abertos, pelo brinde nos melhores copos da casa. Agradecer por terem olhado para a rua para me esperar, pela boa vontade em compartilhar a vida, pela bondade presente entre os tijolos sem pintar que eu pude conhecer.
À noite, em casa, ouvi as gravações e transcrevi inúmeras vezes que “a vida é boa” e o “mundo é ótimo”. Ao olhar as fotos, gato preto e gato branco no telhado da casa, Dona Dionísia em preto e branco do lado de dentro, na sua cadeira perto do meu lugar no sofá. Em cor, os olhos dela ficam azulados. Na foto de família, filhos, netos, bisneta e agregados. Todos sorriem largo. Dona Dionísia, não: em nenhuma foto e em momento algum nessas tantas horas de uma conversa alegre, ela sorriu. Feliz.
Se Dona Dionísia tem medo? Só do avião que nunca conheceu.