- Mariana
Ligações perigosas: Depoimentos à CPI expõem relações íntimas entre Prefeitura de Mariana e empreiteiras contratadas
Fiscais trabalhavam para a Secretaria de Obras, mas eram vinculados à GMP Construções.
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No último dia 15, os depoimentos da engenheira Márcia Regina Damásio Gomes e do engenheiro Sebastião Carlos Lamounier, ambos contratados pelo consórcio Cimvalpi, confirmaram suspeitas e trouxeram novidades à investigação da comissão.
A CPI constatou desvio de finalidade do processo seletivo do Cimvalpi, cujo objetivo era contratar profissionais para fiscalizar as obras da Fundação Renova e dar celeridade aos reassentamentos dos atingidos. Entretanto os engenheiros atuaram como fiscais de obras da própria administração pública, inclusive nas duas grandes atas das construtoras Israel e GMP.
Como se não bastasse, com o encerramento do contrato com o consórcio em dezembro de 2020, boa parte dos engenheiros teriam sido contratados pela GMP e permaneceram exercendo as mesmas atividades de fiscalização dentro da Secretaria Municipal de Obras.
O chefe da fiscalização, Sebastião Lamounier admitiu em seu depoimento que, mesmo com suspeitas de erros, as medições eram pagas às construtoras e uma gambiarra, ou pedalada administrativa era feita. Ou seja, o pagamento de um serviço como se fosse outro teria acontecido em algumas ocasiões. Perguntado sobre os motivos de não revisar as medições suspeitas, o fiscal alega que as construtoras tinham pressa em receber os recursos para repassar aos terceirizados e qualquer eventual erro poderia ser estornado posteriormente.
Depoimento de Márcia Regina Damásio Gomes
Engenheira civil, Márcia Regina declarou que trabalhava na Secretaria Municipal de Obras, nomeada como supervisora de campo, no período de maio de 2018 a novembro de 2019, quando ingressou na CIMVALPI, mediante processo seletivo, passando a prestar serviços na mesma função.
“No processo seletivo, fiquei sabendo que o trabalho teria relação com a barragem de Fundão”, declarou a engenheira, ressaltando que não acompanhou nenhuma obra relacionada a isso, tendo fiscalizado apenas obras de construção de adutoras e muros de contenção e em gabiões. Afirmando não conhecer o engenheiro Marcos Paulo, responsável técnico das obras da empresa Israel, Márcia declarou que a efetiva execução das obras fiscalizadas por ela ficaram a cargo da CME Empreendimentos (adutoras e muro de contenção da caixa d’água do Rosário); da Construtora Israel (gabião da Cascalheira; Praça da Cascalheira, incluindo meio-fio, passeio e recomposição de grama; além do gabião do bairro Chácara) e da Construferras (muro de contenção no subdistrito da Barroca), confirmando a subcontratação de 100% dos serviços em algumas obras.
Explicando a metodologia da fiscalização, Márcia afirmou que Sebastião, exercendo a função de coordenador da equipe de fiscalização, era quem fazia a designação de quais obras seriam de responsabilidade de cada fiscal, esclarecendo que trabalhava em conjunto com o Pimentel, engenheiro e fiscal de obras da Construtora Israel. “O acompanhamento era feito junto com o Pimentel, a gente trocava ideia, vendo as necessidades e fechando a medição, que era entregue, via e-mail, para Rosilene”, informou Márcia, ressaltando que “na maioria das obras, como o gabião da [Rua] Cascalheira, tudo foi executado. A planilha foi elaborada pela Secretaria [de Obras], era uma situação emergencial. Era uma estimativa e teve um acréscimo, porque o gabião tombou mais, antes da execução”.
A engenheira também falou sobre a execução de serviços que, eventualmente, não constavam na ata de registro de preços, ou cujos quantitativos executados excediam o previsto na planilha original de uma determinada obra. “Havia acompanhamento pelos itens e, caso os itens não estivessem dentro da ata, eram informados separadamente, para eventual aditivo ou outra forma de acerto, a cargo do Secretário de Obras”. Revelou, ainda, que ocorreram reuniões para definir esse procedimento, mas não soube informar como a questão foi resolvida.
De acordo com Márcia, depois que as planilhas eram consolidadas pela Rosilene, assim como Márcia contratada por intermédio do consórcio CIMVALPI, um funcionário da Construtora Israel era quem trazia as planilhas para que ela assinasse.
Questionada pelo vereador Marcelo Macedo, a depoente afirmou considerar que a ata de registro de preços não foi benéfica ao município, revelando ter manifestado ao Sebastião, como também o fizeram outros fiscais, alguns questionamentos relacionados aos itens de gerenciamento de obra, constantes nas planilhas. “O que já aconteceu de divergência levantada por mim, e por outros fiscais, era em relação à parte administrativa [das obras], que era composta por engenheiro, encarregado, técnico de segurança, enfim, a parte administrativa que era mais questionada. Por exemplo, os muros de gabiões. Como o Pimentel era o engenheiro que acompanharia, na medição da obra da Cascalheira, eu meço lá as horas do engenheiro, aí vem a obra do gabião da Chácara, tem lá também as horas do engenheiro. Sendo o mesmo engenheiro acompanhando as duas, eu não concordava em compilar as oito horas completas, ou quatro horas, o que fosse, nessas [duas] obras. Eu acho que tinha que considerar ali o mesmo número de horas que esse engenheiro estava atendendo várias frentes. Isso era um questionamento que a gente fazia, né?”
Em algumas ocasiões o vereador Manoel Douglas solicitou a palavra para dirigir perguntas à depoente. Em uma delas, consultando uma planilha da 3ª medição da obra da adutora do bairro Samitri, Manoel questionou Márcia sobre a ausência de sua assinatura, constando apenas as do Secretário de Obras e a de Marcos Paulo, da Construtora Israel. Manoel também enfatizou o grande número de itens com quantitativos negativos, como indícios de serviços acrescentados à planilha, quase todos com valores expressivos. Em resposta, Márcia afirmou ter se recusado a assinar a medição, justamente por conta dos questionamentos que havia feito. “Quando tem quantitativos negativos eu entendo é porque extrapolou o que estava previsto na planilha, mas essa eu não assinei. Eu não quis assinar, por causa dos questionamentos que eu fiz. Conversei com o Sebastião e não me senti à vontade para assinar”, assegurou a engenheira.
“Mas a senhora sabe que, mesmo com esses questionamentos, eles pagavam as planilhas, não é? A senhora não tem dúvida, tem?”, insistiu Marcelo Macedo. “Não [tenho dúvida]. Eu comentava com o Sebastião. Ele dizia que era para considerar as horas para todas as obras, porque o trabalho envolvia outras questões além de estar nas obras”, respondeu Márcia.
Outro ponto bastante enfatizado por Marcelo Macedo, foi a situação criada com o encerramento do convênio entre a Prefeitura e o Cimvalpi. Enfatizando que isso se deu em 14 de dezembro de 2020, o integrante da CPI perguntou à depoente como ficou a situação dela após essa data. “Passei para a GMP até 31 de dezembro [de 2020] e, desde janeiro trabalho como autônoma”, respondeu Márcia, afirmando que exercia a mesma função de supervisora de campo, mas trabalhando nas dependências da Secretaria de Obras. “Mas a senhora era fichada na GMP, a senhora tinha que trabalhar pra ela, não?”, insistiu Marcelo Macedo. “É, mas fiquei locada na secretaria de obras”, rebateu Márcia, revelando que outros profissionais, anteriormente contratados via Cinvalpi, também passaram para a GMP Construções, citando alguns nomes “Marcos Cardoso, Marcelo, Rosilene…, eu não lembro de todos. Eu lembro dos que ficaram ali no Centro de Convenções. Não sei se foram todos [os que prestavam serviços pela Cinvalpi]”, afirmou Márcia, confirmando também os nomes de Sebastião e Claudiano, mencionados por Marcelo Macedo.
Márcia foi questionada sobre sua opinião a respeito do que poderia ter acontecido para ocasionar tantas irregularidades. “Eu não consigo te explicar todo o processo. Acho que foram muitas obras liberadas, para serem executadas em um prazo curto e para serem ajustadas dentro da ata [de preços]. Até então eu nunca tinha trabalhado com tantas obras dentro de um mesmo contrato”, finalizou a depoente.
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Depoimento de Sebastião Carlos Lamounier
Sebastião também trabalhava na Secretaria de Obras, contratado pelo Cimvalpi, sendo nomeado chefe da fiscalização, cargo que exerceu até março de 2021. Entre janeiro e março Sebastião foi contratado pela GMP, o que pode mostrar um flagrante conflito de interesses: Como Sebastião poderia defender os interesses da administração pública e o da empresa que paga o seu salário ao mesmo tempo?
Em sua defesa, o engenheiro afirma não ter fiscalizado nenhuma obra da GMP durante o período, mas não ficou claro porém se Sebastião deixou de ser o chefe da fiscalização durante o período. Questionado pelo vereador Marcelo Macedo sobre a legalidade do contrato entre janeiro e março, quando exerceu a atividade de fiscalização, o engenheiro afirma: “Vamos admitir que não seja legal, mas havia a necessidade de que a gente permanecesse até o dia 19 [de março], mas tinha muita coisa acontecendo. O pessoal da Cimvalpi saiu dia 14 de dezembro, então a Secretaria de Obras ficou quase sem ninguém também”.
Em seguida, porém, Sebastião admite ter intercedido na terceirização da obra da Rua Tijuca no Bairro Nossa Senhora Aparecida. Marli Schiavo Coelho, responsável técnica pela Construtora Schiavo, prestou depoimento à CPI em junho e declarou não ter recebido o pagamento integral pela execução da obra, contratada via ata da GMP. Sebastião afirma não lembrar de todas as pessoas presentes à reunião na qual o prefeito interino, Juliano Duarte, teria solicitado o desconto de R$10 mil à Construtora Schiavo, mas admite ter participado da reunião.
Os depoentes concordam que Juliano Duarte teria pedido o desconto da obra, mas os motivos divergem. De acordo com Marli, o motivo da solicitação do desconto seria viabilizar o pagamento imediato da obra executada para a GMP. Sebastião, entretanto, não soube dizer quais motivos levaram Juliano a solicitar o desconto, mas acredita que “ele achou que poderia diminuir o valor para economizar dinheiro, para a prefeitura pagar menos”.
Sebastião afirmou, em seu depoimento, confiar em toda sua equipe e acreditar não haver qualquer tipo de corrupção na equipe. Confrontado sobre os motivos que o levaram a assinar uma medição mesmo quando a engenheira, fiscal da obra, optou por não assinar devido à identificação de divergências, Sebastião afirma, “se tiver algum erro, ele vai ser apurado mais pra frente mesmo, vai ter que fazer o acerto mesmo, então nó temos que assinar, foi o que eu falei para o Fábio”. E completa: “Nós temos que acreditar nos fiscais engenheiros”.
Confrontado sobre o motivo de, naquela ocasião, ter então assinado a planilha de medição, mesmo com a negativa da responsável, Sebastião declara que, “como detectou que tem erro, então pode estornar, né?”.
O excesso de contratação e pagamento de horas de engenharia e técnicos de segurança de trabalho também foi questionado ao fiscal, inclusive em obras onde tais profissionais sequer eram necessários e não foram contratados.
Sobre tal acusação, Sebastião admitiu que, dentro da Secretaria de Obras, uma manobra administrativa acontecia. Segundo o depoente, em alguns casos os itens das planilhas contratuais extrapolavam o limite contratado. Então, quando isso acontecia, o recurso administrativo era pagar um item como se fosse outro.
A manobra administrativa poderia ser legítima, uma vez que de acordo com Sebastião, os valores eram equivalentes: ao invés de pagar 250 reais pelo fornecimento de um determinado número de sacos de cimento, pagava-se os mesmos 250 reais como se fosse uma pia instalada, por exemplo.
A reportagem da Agência Primaz apurou que esse tipo de manobra, entretanto, fere princípios básicos da administração pública, como a legalidade, a moralidade e transparência, além disso de dificultar o processo de fiscalização e controle, como é o caso da CPI. A partir do momento que os itens da planilha não conferem com os itens presentes em cada obra, como realizar efetivamente a fiscalização?
Consultado pela Agência Primaz, o advogado André Lana aponta aspectos da lei de licitações que são desrespeitados em situações como a declarada pelo depoente Sebastião Lamounier. “A lei de licitações até permite adequações, aditivos e supressões nos contratos, desde que sejam feitos por meio de aditivos contratuais formais muito bem fundamentados e dentro de limites que evitem a descaracterização da obra e a incidência de sobrepreços nos itens modificados”, afirma Lana.
De acordo com o Portal da Licitação, indicado por nossa fonte jurídica, “durante a execução da obra é possível que a evolução dos trabalhos demonstre necessidade de adequar o escopo para melhor atender aos objetivos públicos”, sendo ressalvado que isso deve ser formalizado por termos de aditamento que “não devem, em nenhuma hipótese: a) Descaracterizar o objeto, a modificar sua essência; ou b) Permitir o “jogo de planilha”, admitindo-se sobrepreço para alguns itens, tornando o valor do contrato injustificadamente mais oneroso para a Administração”. Adicionalmente, também é ressaltado que “eventuais acréscimos, supressões, modificações de itens da planilha devem ser tecnicamente justificadas, averiguando-se a compatibilidade do valor unitário do material e serviço, com valores constantes das tabelas oficiais de preços (SINAPI, SICRO etc – vide Decreto federal nº 7.983/2013)”.
Em um dado momento, o vereador Marcelo Macêdo cobrou responsabilidades do Poder Executivo sobre os problemas das obras. “Seu Tião, o que se cometeu é crime, tem crime atrás de crime nessa investigação, na CPI. A gente tá investigando aqui a bagunça que foi feita com dinheiro público, a bagunça que essas empresas irresponsáveis fizeram em Mariana. É a bagunça de obra que esse secretário irresponsável fez junto com o prefeito, porque o prefeito foi conivente com tudo isso, ou você acha que o prefeito não sabia de nada? Quem autorizou fazer as obras? Ou o senhor fez por sua conta? O Fábio fez por conta dele? Qualquer um quer ser prefeito se não precisar se responsabilizar por nada. Isso é dinheiro público, é dinheiro do povo, vocês brincaram com o dinheiro do povo”, desabafou o vereador.