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Hoje é segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Usuários têm dificuldades para utilizar o cartão do auxílio emergencial em Mariana

Comerciantes não aceitam o cartão por causa da alta taxa de administração. Em alguns casos parte da taxa está sendo repassada aos beneficiários.

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Aviso afixado no Sacolão Center, informando que o cartão de auxílio municipal emergencial não é aceito no estabelecimento – Foto: Luiz Loureiro/Agência Primaz
Distribuídos entre 16 e 18 de agosto, os cartões do “AME Mariana” (Apoio Municipal Emergencial) vem sendo recusados por muitos comerciantes do município, uma vez que a empresa, contratada para gerenciar o programa, cobra taxa de administração de até 12%. Em alguns casos, proprietários de estabelecimentos comerciais têm repassado parte ou a totalidade deste custo aos beneficiários, o que reduz o valor do auxílio concedido. Além disso, existem queixas quanto ao comportamento da empresa, tanto por divulgar lista de credenciados que sequer foram procurados, quanto por oferecer taxas distintas, dependendo do porte do comércio, o que onera mais os pequenos estabelecimentos.

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O Projeto de Lei 66/2021, aprovado pela Câmara de Mariana em sessão extraordinária realizada no dia 14 de maio, autorizou a criação “auxílio de apoio e renda para famílias de Mariana denominado ‘Apoio Municipal Emergencial de Mariana – AME Mariana’, de caráter assistencial e com a finalidade de conceder atenção especial às famílias em situação de vulnerabilidade social. O projeto de lei aprovado previa a concessão de três parcelas de R$250, concedidas a todos os cidadãos marianenses inscritos no CaD Único”, e beneficiados pelo Programa Bolsa Família no Governo Federal. Na ocasião da discussão e votação do projeto de lei, uma proposta de elevar o benefício para R$600 mensais foi rejeitada pela Câmara.

Implantação do programa de auxílio municipal emergencial

A Secretaria de Desenvolvimento Social e Cidadania (SEDESC) foi o setor designado para a concessão e o acompanhamento do benefício, sendo lançado o Pregão Eletrônico PE nº 024/2021, na modalidade “maior percentual de desconto”, para selecionar uma empresa para confeccionar os cartões e administrar a implantação e concessão do benefício. Ao final do processo licitatório, a Le Card Administradora de Cartões Ltda, com sede em Vitória (ES), foi declarada vencedora, concedendo um desconto de 19% do valor previsto para o programa assistencial emergencial.

O contrato celebrado entre a Prefeitura de Mariana e a Le Card não estava disponível no Portal da Transparência, como constatado em acessos realizados desde a última sexta-feira (20). O problema foi relatado à Secretaria Municipal de Planejamento, tendo sido detectado um problema no site. Entretanto, por e-mail, a Agência Primaz recebeu uma cópia eletrônica do documento.

De acordo com o contrato nº 157/2021, om previsão incluída também no edital do pregão eletrônico, a empresa tinha a responsabilidade de promover o credenciamento dos estabelecimentos do município, comprovando a providência com a entrega de uma lista na ocasião da assinatura do contrato.

Esta lista, disponível no site da empresa, foi o início dos problemas para alguns comerciantes locais. “Só fiquei sabendo que meu estabelecimento estava credenciado quando um cliente me disse que constava na lista distribuída junto com o cartão”, informou a proprietária de um comércio de gêneros alimentícios estabelecido no centro da cidade, pedindo que seu nome não fosse revelado. De acordo com essa fonte, nenhum representante da empresa havia feito contato, revelando que só soube dos detalhes do credenciamento ao ligar para a empresa e ser informada que haveria uma taxa de administração de 12% e que sua máquina já estaria habilitada. Em um outro contato, porém, ao reclamar que não teria como absorver essa taxa, a informação foi que seria possível chegar a 9%.

Mesmo assim, a comerciante declarou à nossa reportagem que esse percentual é muito superior à média do mercado, tendo optado, com aconselhamento de um advogado, a repassar 5% para os clientes, com base na Lei 13.455/2017, que permite a utilização de valores diferenciados em função do prazo ou do instrumento de pagamento. “Só fiz isso porque me disseram que havia muita dificuldade em usar o cartão, mas cumpri a determinação de colocar um aviso bastante visível dessa questão”, finalizou.

Alguns comerciantes estão recusando vendas pelo cartão Le Card e até organizaram um grupo de WhatsApp para monitorar o credenciamento dos estabelecimentos – Foto Banco de Imagens/Shutterstock

Vários comerciantes, ainda sob condição de anonimato, revelaram à reportagem da Agência Primaz que, mesmo com a inclusão de seus estabelecimentos na suposta lista de credenciados (disponível aqui), não foram procurados pela empresa. Outros confirmam o contato, mas informam que recusaram as propostas, mesmo com alguma redução do percentual da taxa de administração, e não assinaram o contrato.

Um comerciante da área de alimentação informou à Agência Primaz que, no primeiro contato, recusou a taxa de 12%. “Com esse desconto, essa empresa não quer ser minha parceira. Quer ser sócia de meu negócio”, brincou. Ele afirma que, após recusar a primeira proposta, vem recebendo ofertas de progressivas reduções da taxa de administração, a última em torno de 8%, mas mesmo assim resolveu não assinar o contrato encaminhado a ele por e-mail, mesmo com seu estabelecimento incluído na lista de credenciados à sua revelia. E também revelou que, ao ser procurado, não recebeu nenhuma instrução quanto à restrição de uso do cartão para compra de determinados produtos, como bebidas alcoólicas, por exemplo.

A reportagem da Agência Primaz conversou com os responsáveis pelo Sacolão Center, da área de hortifrutigranjeiros, José Carlos Sena, Emerson Coelho e Karine Souza. Eles revelaram que a proposta inicial, de 12%, foi prontamente recusada. “Um representante da empresa nos procurou, não me lembro o nome. Ele falou rapidamente sobre o cartão e informou que tinha uma taxa de 12%. Eu olhei [surpreso] pra a cara dele e ele mesmo já falou: ‘Meio difícil, né? É assustador”, contou Emerson, acrescentando que os cartões utilizados no estabelecimento têm taxas variando entre 2,5 e 5%. Além disso, conforme informado por Emerson, essas taxas mais altas somente são aceitas quando geram um grande volume de vendas, o que não é possível avaliar nesse caso. “As pessoas não vão gastar todo o dinheiro em produtos como os nossos”, afirmou Karine, lembrando que, dependendo do cartão, ainda existe uma taxa cobrada pelos bancos no momento do saque. E ainda disse que não foi informada dos prazos de repasse do dinheiro pela empresa que gerencia o cartão, mas que houve um contato nesta quinta-feira, informando que a taxa poderia ser de 10%

José Carlos Sena afirmou que a taxa pedida representaria repassar toda a margem de lucro à empresa, ou mais ainda, no caso de determinados produtos. E ainda revelou que a situação o obrigou a ter que fazer um trabalho de esclarecimento aos seus clientes, além de colocar um cartaz avisando que o estabelecimento não está credenciado.

A reportagem da Agência Primaz conversou com a responsável por um açougue que está aceitando o cartão, sem repassar a taxa de administração, obtendo a informação que o procedimento está sendo feito em fase de testes, para verificar a possibilidade de manutenção pelos três meses, mas ressaltou que, pelo movimento nos primeiros dias, é pouco provável que o estabelecimento tenha condições de absorver esse custo adicional.

Também foi feito contato com comerciantes de dois distritos do município e ambos concordaram em dar declarações, sob condição de anonimato. Em um deles a proprietária demonstrou irritação ao comentar sobre as taxas que o Le Card, já que ficou sabendo de estabelecimentos que estão sendo credenciados com taxas diferenciadas. No seu caso, a taxa foi reduzida para 8%,  e ela disse que só aceitou por causa da insistência do representante da Le Card, que a procurou mais de uma vez. Revelou, ainda, seu receio da empresa não honrar esse compromisso. “O auxílio veio para ajudar, mas no final eles estão querendo ferrar com os comerciantes”, finalizou.

Em outro distrito, o comerciante afirmou ter aceito a taxa de 12% por extrema necessidade, o que vem se comprovando por um grande volume de vendas verificado nos primeiros dias em seu estabelecimento, talvez por não haver outros comerciantes credenciados no local. Ele não repassa a taxa porque entende que “Isso ajuda a resolver tantos os problemas dos clientes quanto os do comerciante”. Mas demonstrou preocupação quanto ao recebimento dos valores das vendas, revelando apreensão por não conhecer a empresa e não ter muitas referências sobre elas.

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A conta não fecha

No processo de licitação, a empresa Le Card ofereceu um desconto de 19% sobre o valor total do auxílio municipal emergencial - Foto: Banco de Imagens/Shutterstock

De acordo com as informações repassadas à Agência Primaz pela Secretaria de Desenvolvimento Social e Cidadania (SEDESC), o programa contemplou 4.410 beneficiários, inscritos no CaD Único, tomando como referência o mês de abril deste ano, estando prevista a concessão de três parcelas mensais consecutivas, cada uma no valor de R$250, atingindo o total de R$3.307.500,00.

Entretanto, pelo modelo de licitação adotado, a empresa concedeu 19% de desconto, reduzindo o valor global da despesa para R$2.869.075,00, como repasses de R$893.025,00 mensais, da Prefeitura para a Le Card.

Desse modo, a conta não fecha. Se todos os beneficiários utilizarem integralmente o valor do auxílio, os comerciantes de Mariana, em conjunto, vão apresentar à empresa uma fatura mensal de R$1.102.500,00 por mês, recebendo no máximo R$970.200,00 após o desconto de 12%. Portanto, a empresa administradora do cartão teria um prejuízo mensal superior a R$77 mil.

Consultando um advogado com larga experiência em processos de licitação, a Agência Primaz apurou que o desconto poderia ter sido motivo de desclassificação da proposta da Le Card, uma vez que caracterizaria a impossibilidade de execução do contrato. “Para que a empresa tivesse qualquer lucro, a taxa de administração deveria ser maior que o desconto dado”, afirmou o advogado.

Questionada sobre os procedimentos de controle do uso do cartão, a SEDESC afirmou que isso é responsabilidade da Le Card, juntamente com os comerciantes credenciados. “Esse processo não é de responsabilidade do poder público. O cartão funciona como um cartão de débito pré-pago: tem R$250 por mês (durante 3 meses) e com esse valor a família compra o que quiser em padarias, açougues, mercearias e mercados de Mariana e distritos. Para nós, do poder público, é o que importa: autonomia para essas famílias comprarem o que quiserem nesse momento de pandemia e fortalecer o comércio local com esse aporte direto de mais de R$3 milhões”.

Em relação à questão do repasse da taxa de administração aos beneficiários do auxílio, para a SEDESC informou ter tomado conhecimento e repassado a informação à empresa, de acordo com a nota encaminhada à Agência Primaz, por e-mail: “A SEDESC já tomou conhecimento dos comércios que estão repassando a taxa ao beneficiário do AME ou mesmo se negando a vender. Porém, como essa relação (comércio/operadora do cartão) é uma relação privada, regida por um contrato entre essas duas partes, cabe a nós apenas informar à empresa que isso está acontecendo para que, estando em desacordo com o contrato entre eles, seja tomada alguma providência. É isso já foi feito. O retorno que obtivemos é que estão montando uma notificação para notificar as empresas”, dia a nota.

Cabe ressaltar, entretanto, que a Lei 13.455 estabelece, no parágrafo único de ser Art. 1º, que “é nula a cláusula contratual, estabelecida no âmbito de arranjos de pagamento ou de outros acordos para prestação de serviço de pagamento, que proíba ou restrinja a diferenciação de preços facultada no caput deste artigo”.

Le Card

E seu site, a empresa contratada pela Prefeitura informa ter mais de 1.900 clientes, tendo emitido mais de 320 mil cartões, com mais de 23 mil credenciados em mais de 1.800 municípios. Para tentar esclarecer as questões referentes à implantação em Mariana, a Agência Primaz fez sucessivas tentativas de contato, mas sem obter sucesso. Inicialmente conseguimos o telefone direto de uma pessoa da área jurídica da empresa, mas ela não atendeu a nenhuma das ligações. Pelo Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC) da Le Card, conseguimos a confirmação de que essa pessoa era quem poderia falar em nome da empresa e nossa ligação foi direcionada para o setor jurídico. A informação repassada, na última sexta-feira, foi que a pessoa se encontrava em reunião de diretoria e que retornaria mais tarde. Isso não aconteceu e, nesta segunda-feira (23), as tentativas de ligação feitas pela reportagem da Agência Primaz não foram atendidas.

Pesquisando no site Reclame Aqui (acesso feito às 16h), apuramos que foram registradas várias reclamações contra a empresa, feitas tanto por credenciados quanto por usuários. No geral, as reclamações dos credenciados são a respeito de altas taxas, cobranças indevidas e atraso nos repasses. Já por parte dos usuários prevalecem as queixas sobre problemas de acesso ao sistema e dificuldades para encontrar estabelecimentos efetivamente credenciados.

ACIAM

A Associação Comercial, Industrial e Agropecuária de Mariana encaminhou nota à redação da Agência Primaz, informando sobre a não participação da entidade na preparação e implementação do auxílio no município e sobre as ações tomadas em relação ao assunto. Leia abaixo a íntegra da nota assinada por Amarildo Pereira, presidente da ACIAM/CDL.

A ACIAM foi procurada, por vários comerciantes, para se posicionar em relação ao cartão que a Prefeitura distribui para parte da população. Vale ressaltar que não participamos do projeto, sendo a nós, somente informado que a ideia era fazer distribuição de uma ajuda as famílias de baixa renda, como também fomentar a economia local. Achamos ótima a iniciativa, já que a população e os comerciantes, vem sofrendo bastante com as restrições impostas pela pandemia.

A partir das reclamações dos comerciantes, alegando ser quase impossível receber o cartão como forma de pagamento, já que a taxa de administração é muito alta, muito acima das taxas que são referência no mercado, tendo também acesso a documentos que comprovam esses relatos, entramos em contato com a Prefeitura para pedir mais informações.

Foi nos passado que a empresa administradora do cartão foi escolhida por ter apresentado a melhor proposta e também que a prefeitura tem uma lista de 100 empresas que se cadastraram para atender ao público que receberia o cartão. Tentamos também entrar em contato com a empresa administradora do cartão para entender essa taxa cobrada, que conforme documento que nos foi apresentado é de 12%, muito além das taxas praticadas no mercado. A ideia era intermediar uma negociação, mas infelizmente não obtivemos retorno.

A ACIAM, está à disposição para tentar intermediar uma possível negociação ou repactuação entre comércio de Mariana e empresa administradora do cartão, como também para tentar apoiar os comerciantes de Mariana”.

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