Notícias de Mariana, Ouro Preto e região

Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Renascimento

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”

Compartilhe:

De longe, aos poucos, milhares de vaga-lumes reluzem em torno das casas, dos apartamentos, dos pontos comerciais. Bairros ricos, medianos, pobres. De todos os cantos, logo que o Sol descansa, o balé dos vaga-lumes preenche o vazio da noite. A cidade dorme. Assim, distante, é um espetáculo inigualável: luzes pisca-pisca a embalar o sono de uns, a iluminar os sonhos de outros.

É uma época especial, quando chega o mês de dezembro. As vitrines convidam para as palestras alegres que se desenrolam dentro das lojas, enquanto desejos misturados aos sonhos, embalados em pacotes, cuidadosamente entrelaçados por fitilhos dourados, são carregados.

Zigue-zague cantorias. Ensaios de corais para a comemoração da festa cristã. Na praça, um presépio é montado. A criança recém-nascida sorri. O cenário atrai o olhar dos desamparados que rogam pela ajuda do menino escolhido. “Rogai por nós, Senhor!”, diz o homem de passos rápidos, e famílias passeiam, alegremente, ensaiando poses para as fotografias.

            Planos.

            Planejamentos.

            Orçamentos.

            Há uma cidade dentro da cidade.

O casal aperta a vida apertada. Foge dos embaraços. Conta de luz atrasada. Contas. Luz apagada. Um toco de vela, de lápis, para as contas do mês, dos meses. O arroz mais caro. O açúcar mais caro. O leite da criança, escasso. A falta do café, do pão, do feijão.

            Grãos.

            A fila da ajuda.

            “Ave Maria, mãe dos aflitos.”

            Mãos postas, joelhos em castigo diário.

            “Perdoai-nos as nossas ofensas.”

            A fome de todos os dias.

            “Se alguém nos tem ofendido?”

            Uma batida na porta.

Não há mais o que oferecer. Cacarecos amontoados. Um canto em qualquer canto. A criança chora, porque sente frio, sente fome, sente vergonha de quem está olhando. O pai abaixa a cabeça. A criança esconde. A mãe… engole o choro.

De longe, as luzes escondem a cidade invisível e ofuscam a visão dos homens atarefados.

            Cantos alegres silenciam o choro mudo.

            Grito afogado em seco.

            Sonhos se apagam em ventres vazios.

O viaduto está cheio. O burburinho agita a vizinhança. Outras luzes brilham. Crescem vertiginosamente. Os cacarecos voam e não há para onde fugir.

A menina vê a boneca ser pisoteada. Chora. Seu olhar é de súplica para a mãe. Ganhou o presente no último Natal. Tão cuidadosa, não se esquece de colocá-la para dormir, todas as noites, bem ao lado do seu travesseiro. Lembrança de uma ação social. Papai Noel havia se lembrado dela. Não entendia a razão de ele ter pulado a sua casa algumas vezes. Escrevia cartinhas. Na escola, as notas eram sempre as melhores da classe. Mas, nem sempre o velhinho de longas barbas brancas passava pela sua porta. Da última vez, sim. Agora via a sua boneca pisoteada. Corre. Coração aos pulos. O pai tenta agir rapidamente, desvencilhando-se de toda a gente. Encontra o olhar da mulher. A criança no meio da confusão. A área é vizinha da praça central. O pai é empurrado por homens uniformizados. Há encontro de luzes que ofuscam a cena que a mãe vê de muito perto.

            Um apagão.

Distantes, invisíveis, procuram, silenciosamente, abafar o som do coração que ainda pulsa em atropelos. A criança segura bem forte a boneca. Deseja limpar do vestido verde-esperança a marca de botina. Um quarto é improvisado no canto mais escondido do bairro. Pedaços de papelão, um cobertor de casal. A mãe sente que chegou a hora esperada e temida. Ninguém sabe explicar, mas a ajuda de três mulheres facilita o parto, e, em poucos minutos, a garotinha precisa novamente abandonar a boneca, porque o seu irmão nasceu.

A criança chora e todos dão vazão ao sentimento há pouco escondido. Turbilhão de sentimentos. Por um instante, a paz enlaça aquelas pessoas que partilham o pouco que têm. Um caixotinho de feira é forrado cuidadosamente, e o presépio verdadeiro está pronto. Em torno dele, pão, água e café formam a ceia na gruta forjada, no seio da cidade que ninguém quer ver.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
Veja mais publicações de Giseli Barros

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *