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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

“Tinta preta não é fantasia”: Manifestantes pedem justiça no caso blackface, em ato na UFOP

Entidades, movimentos e estudantes cobram um posicionamento mais contundente da Universidade e punição aos acusados de ato racista

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Manifestantes estendem cartazes e usam o microfone para expor indignação ao caso blackface - Foto: Giulia Pereira/Agência Primaz
O almoço no Restaurante Universitário (RU) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), no Campus Morro do Cruzeiro, nesta quarta-feira (11), ficou marcado por uma manifestação de estudantes, coletivos negros e sindicatos contra o racismo, após o “episódio blackface” que aconteceu na última semana envolvendo duas repúblicas particulares e uma federal, na tradicional festa republicana “Miss Bixo”. Dois ônibus levaram mais de 120 pessoas de Mariana para o ato na Cidade Histórica. Um veículo foi fornecido pelo vereador ouro-pretano Alex Brito e outro foi cedido pela Associação dos Docentes da UFOP (Adufop). Somando com os manifestantes vindos de Mariana, a Bateria Carabina — que faz referência a uma grande personalidade preta ouro-pretana, Efigênia Carabina, falecida no ano passado — formada por mulheres estudantes da UFOP; o Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe) de Ouro Preto; União de Negras e Negros pela Igualdade e outros grupos organizados da sociedade civil estiveram presentes no ato.

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Vários cartazes, confeccionados para a manifestação, estampavam frases contra o racismo e protestos contra a prática de blackface, além de contestar a UFOP pelo posicionamento “brando” em relação às punições cabíveis às pessoas que pintaram seus rostos com tinta preta na festa republicana. Para muitos que estavam ali, o ato foi uma forma de dizer “basta” às práticas que ofendem as pessoas negras dentro da sociedade, principalmente dentro da Universidade. “É relevante que todas as pessoas que se sentem incomodadas com o racismo que acontece nessa Universidade há anos participem da luta. O blackface acontece na festa de ‘Miss Bixo’ e a gente não aguenta mais passar por esse tipo de situação. Isso é racismo, isso é violento e acaba com a gente”, disse Leliane Faustino, que faz pós-graduação em História na UFOP e é integrante do Coletivo Negro Braima Mané, que existe desde 2015, atuando na criação e manutenção de espaços voltados para as necessidades e vivências das pessoas negras, reivindicando atenção e visibilidade efetiva de suas especificidades.

Leliane Faustino disse que o movimento espera que as medidas legais cabíveis sejam aplicadas para os autores do episódio blackface. “Acho que as pessoas precisam ser punidas de alguma forma, racismo é crime”, complementou.

A UFOP criou uma comissão para averiguar o caso “blackface” em um prazo de 30 dias. Porém, os manifestantes acreditam que medidas mais enérgicas já deveriam ter sido tomadas. Dessa forma, o ato teve a finalidade de cobrança, para que esse processo não seja apenas protocolar e sim de punição às pessoas que cometeram esse crime de racismo. “Viemos cobrar à reitoria para que ela tenha políticas efetivas de combate ao racismo dentro da instituição. Este não é o primeiro caso, mas esperamos que a partir dele haja a mudança de postura, tanto da reitoria quanto dos demais componentes da comunidade acadêmica para combater essa prática de racismo dentro da Universidade. A instituição tem tomado uma postura muito branda, porque caso de racismo é crime e ele deveria ser muito mais forte a demanda contra as pessoas que cometeram isso”, declarou Du Evangelista, diretor do Sindicato dos Trabalhadores Técnicos Administrativos da UFOP.

Aída Anacleto é ex-aluna do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFOP (ICHS), ex-vereadora de Ouro Preto, participa do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e indígenas (Neabi) e é integrante do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial. Como uma reconhecida participante da luta da população preta na Cidade Patrimônio, ela se fez presente no ato e manifestou seu estado de choque em ver, em pleno 2022, atitudes e ações que ferem pessoas dentro do racismo estrutural que existe na sociedade brasileira. Porém, ao mesmo tempo, ela vê o protesto desta quarta-feira como um grande passo na luta pela igualdade racial. “O movimento blackface tem se alastrado. Às vezes, as pessoas não sabem o que significa, mas ao mesmo tempo, tenho minhas dúvidas nesse momento em que o ódio está aflorado e que nós, povo preto, temos medo até de sairmos nas ruas. É necessário que, quando saiam de casa para estudar em outra cidade, que conheçam a história do lugar, que conheçam o regimento da Universidade e que tenham empatia. Inclusive, a Escola de Minas tem que acabar com esse tal de ‘Miss Bixo’, colocar o estatuto o que pode, o que não pode. O que não pode é cometer crime de racismo contra nós. Nós da Região dos Inconfidentes, estamos indignados com o que aconteceu”, comentou Aída Anacleto.

Ouro Preto possui 70% da sua população autodeclarada negra, segundo o censo do IBGE de 2010, tendo ouro-pretanos descendentes de milhares de pessoas escravizadas no século XVIII. A UFOP está inclusa nos efeitos de uma sociedade construída diante de uma forte influência da desigualdade racial. Entretanto, em 2022, o que grande parte da sociedade espera da comunidade acadêmica são produções propositivas a fim de que haja mudanças de paradigmas que estão profundamente engessados dentro de um racismo estrutural existente na cidade e no país inteiro.

A gente entende que é uma oportunidade de fazer uma revisão de paradigmas aqui dentro da Universidade para a criação de uma cultura antirracista. Entendemos, também, que há diferenças dentro da própria universidade que afastam e que não criam oportunidades de direito. Fatos como esse, de blackface, é uma ofensa gravíssima. Precisamos de políticas inclusivas e de distribuição de oportunidades. O sistema de cotas ainda é pouco, a gente precisa avançar mais. Políticas efetivas de inclusão de pessoas negras, de indígenas, é preciso ser mais eficaz nesse sentido”, cobrou Luiz Carlos Teixeira que, dentre várias organizações da sociedade civil, também faz parte da União de Negras e Negros pela Igualdade.

Apoiador da manifestação, Alex Brito, sendo um dos poucos pretos integrantes da Câmara Municipal, vem se destacando com propostas que visam à igualdade racial em Ouro Preto. Por meio de sua atuação, foi instituído o Dia da Mulher Negra Efigênia Carabina, bem como foi proibido que ruas e praças sejam nomeadas por personalidades escravocratas da história da cidade. Recentemente, o vereador conseguiu a aprovação do Projeto de Lei 374/2021, de sua autoria, que institui cotas raciais para o ingresso de negros e negras no serviço público municipal em cargos efetivos. “Nós já saímos das senzalas há muitos anos, então isso não justifica o que aconteceu aqui na UFOP. Isso é inaceitável. Toda a beleza de Ouro Preto, nas nossas igrejas, todos os museus, tudo de mais lindo que nós vimos no Brasil afora saiu daqui. Então nós não podemos aceitar mais. Não temos mais paciência para esse tipo de situação e nem temos que engolir isso mais”, declarou.

Ausência da Reitoria e de professores

Cartaz irônico sobre o posicionamento da UFOP no caso blackface - Foto: Giulia Pereira/Agência Primaz

Nenhum representante da Reitoria da UFOP compareceu à manifestação. A Adufop, por sua vez, forneceu um ônibus para que os estudantes de Mariana pudessem comparecer no Campos do Morro do Cruzeiro para o protesto em frente ao RU, porém, não foi visto um número expressivo de professores, tendo apenas um se apresentado durante o ato. Rodrigo Fernandes Ribeiro é professor do curso de Serviço Social, no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA), em Mariana. Em seu discurso, ele disse que a Adufop se coloca em apoio do processo de reformulação do sistema de gestão das repúblicas dentro da UFOP, acreditando que a maioria do conjunto dos professores e professoras também apoia essa causa. Para o docente, o episódio “blackface”, ocorrido na última semana, precisa ser revertido em educação antirracista e espera punição naquilo que for identificado como crime. “É importante estarmos aqui dentro para que a gente possa enfrentar o racismo estrutural não só na Universidade, como na nossa sociedade. Enfrentar cotidianamente com pedagogia antirracista e também enfrentar os dilemas que a Universidade está passando neste momento. Precisamos enfrentar esse sistema de gestão das repúblicas dentro da Universidade. A política de assistência estudantil é para aqueles que precisam, não meramente para fomentar aqueles que não precisam. Precisamos de critério socioeconômico e racial para a entrada em equipamentos públicos, como as repúblicas, pois elas são patrimônio público”, declarou Rodrigo Fernandes.

À Agência Primaz, o professor do curso de Serviço Social disse que esperava uma presença maior de estudantes no ato, principalmente dos que estudam em Ouro Preto. Ele também tenta explicar a ausência de mais professores no ato. “Acredito que existe uma série de dificuldades para enfrentar esse assunto. Acho que, inclusive, deveria ter muito mais estudantes aqui também participando desse ato, incluindo os de Ouro Preto, porque uma boa parte dos alunos que estão aqui vieram de Mariana. Mas eu acho que faz parte dessa luta precisa ser educativa também, para todos, incluindo professor e servidor técnico. Creio que o diagnóstico da ausência de mais professores vem disso também, mas acho que temos condições de enfrentar isso e avançar no tema. O ato de hoje auxilia nesse processo”, finalizou.

Em resposta aos questionamentos da Agência Primaz, a UFOP informou que a “Universidade é um espaço democrático, portanto aberto a manifestações”. Quanto à manifestação, declarou que a Administração Central respeita e apoia a organização do ato e se mantém aberta ao diálogo, reiterando sua posição de acordo com a nota publicada em seu site, “repudiando qualquer ato de racismo”. “A Administração Central respeita a legitimidade (da manifestação), considerando que a pauta deve ser repercutida, inclusive pedagogicamente, uma vez que o preconceito racial, presente em nossas estruturas sociais, precisa ser desconstruído. A organização do ato se deu a partir das organizações sindicais, estudantis e coletivos”, posicionou a UFOP, por meio de nota encaminhada à redação.

Por fim, a Universidade destacou um trecho da nota que já havia sido divulgada anteriormente sobre o caso, no dia 6 de maio: “A reprodução de estereótipos que reforçam a opressão está na contramão do que propõe uma instituição de ensino superior comprometida com o desenvolvimento social, com o respeito às diversidades e com a garantia dos direitos à cidadania plena“.

Ao receber a denúncia de blackface, por meio de sua Ouvidoria, a UFOP constituiu comissão para avaliar o caso, que tem prazo de 30 dias para emitir um parecer.

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Por uma educação antirracista

Manifestante segura o livro “O genocídio do negro brasileiro” de Abdias Nascimento – Foto: Giulia Pereira/Agência Primaz

Com intuito de construir uma base educacional antirracista, a Lei 10.639/03 foi implementada em 2003. A partir daquele momento, se tornava obrigatório o ensino e inclusão da história e cultura afro-brasileira na grade curricular do ensino fundamental e médio. A lei promoveu uma mudança no conteúdo programático escolar, sendo um marco na construção de políticas públicas contra a discriminação racial.

Segundo as diretrizes fomentadas, os conteúdos referentes seriam ministrados em todas as áreas do currículo escolar, principalmente nas matérias de Educação Artística, Literatura e História Brasileira. Apesar da potência de sua proposta e, mesmo após mais de 18 anos da sua sanção, ainda se percebe uma dificuldade na aplicação da lei dentro dos espaços escolares. Além disso, é visível a necessidade de ampliação desta lei para outros espaços.

Durante o ato desta quarta, muitos representantes reivindicaram o uso da Lei 10.639/03 dentro das universidades. Segundo Aída Anacleto, as políticas públicas antirracismo devem alcançar distintas áreas para que sejam realmente eficazes. “É necessário que a universidade implemente a lei 10.639 em todos os cursos. Não adianta nada nós, da [área de] humanas, ficarmos nessa luta se os outros, que essa universidade que forma pessoas, que forma trabalhadoras e trabalhadores, não tenha essa consciência, ainda mais na segunda cidade mais preta desse Brasil. Cidade essa que nós, povo preto, ainda não temos acesso. Então eu acho que é o momento de nós pararmos para refletir e tomarmos atitudes com relação ao que os nossos corpos estão fazendo nessa cidade e nessa universidade”, explica.

Como servidor preto da UFOP, Du Evangelista percebe as mudanças no panorama da universidade com a inserção de mais negros e negras através das políticas de cota. Contudo, ele aponta, como Aída, que é preciso expandir. “A gente vê uma movimentação maior de pessoas negras dentro da universidade, mas a gente acredita que precisa ter política institucional de combate ao racismo e que seja aplicada também no ambiente universitário a lei 10639, falando sobre as questões de equidade racial, aponta.

Buscando cumprir esse papel, grupos e movimentos de estudos negro trazem para o espaço universitário estudos étnico-raciais. É o caso do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI) da UFOP, existente desde 2009, e consolidado como importante polo da produção científica negra e indígena na universidade. “É sempre um desafio produzir esse tipo de ciência dentro da Universidade, que é um espaço estruturalmente racista e vemos como importância criar esse avanço dentro da ciência, é o que vai desconstruir uma ciência que foi construída em cima de bases, teorias e epistemologias brancas. Precisamos questionar e avançar em relação à inclusão de outras culturas, inclusive a afro-brasileira, comenta Ângelo de Oliveira, representante do Coletivo Negro Braima Mané e do NEABI.

Faixa estendida em frente ao RU do Campus Morro do Cruzeiro – Foto: Giulia Pereira/Agência Primaz

Relembre o caso

Na última semana, repúblicas de Ouro Preto foram alvo de denúncias devido a publicação nas redes sociais no qual estudantes apareciam com a pele pintada nas cores preta e marrom. As imagens viralizaram na internet causando indignação nos internautas que apontaram que o episódio se tratava de blackface, um ato racista em que pessoas brancas pintam a pele em cores escuras para ridicularizar e inferiorizar pessoas negras.

As duas repúblicas particulares envolvidas, Cravo e Canela e Xamego alegaram que as fantasias, feitas para a tradicional festa, “Miss Bixo”, representavam personagens do desenho animado Corrida Maluca. Já a república federal, Território Xavante, que também aparece em imagens, não se pronunciou. O Coletivo Negro Braima Mané, juntamente com a participação do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI) da Universidade Federal de Ouro Preto; do Movimento Negro Mariana (MNM); do Diretório Central dos Estudantes (DCE), e de parte dos estudantes negros, se articularam e formalizaram as denúncias contra as pessoas envolvidas.

Com grande repercussão nacional, o UFOP se posicionou em nota confirmando o recebimento das denúncias através da Ouvidoria da instituição. “Selecionados os elementos comprobatórios, essas denúncias serão encaminhadas à Pró-reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis (Prace) para instauração de sindicância, apuração e posterior decisão”. Contudo, a nota foi classificada como “vergonhosa” por grande parte dos estudantes, que esperam que as medidas cabíveis sejam tomadas de forma mais rígida. O ato desta semana foi uma forma de pressionar a instituição para que o episódio não caia em esquecimento como outros casos de racismo que já aconteceram no espaço universitário.

Em um pronunciamento do Coletivo Negro Braima Mané, e em resposta à Agência Primaz, são indicadas as medidas punitivas e educativas esperadas perante o episódio como a reivindicação de abertura de sindicância interna, apuração e responsabilização das pessoas e repúblicas envolvidas, em caso de constatação do crime de racismo. Questões que já foram indicadas como em processo pela instituição. Também se aguarda o “encaminhamento do caso para instâncias externas à UFOP para apuração e responsabilização das pessoas envolvidas pelo crime de racismo; desenvolvimento e oferecimento, por parte da UFOP, de atividades de caráter formativo e educativo para que fatos como este não voltem a ocorrer; criação de uma “Ouvidoria contra o racismo” na UFOP, visando estabelecer canal seguro de denúncia para crimes deste tipo na Universidade; criação de legislação ou regimento interno sobre tais crimes na Universidade, a fim de institucionalizar um posicionamento da instituição sobre este tipo de prática, bem como punir pessoas que as façam e coibir futuras ocorrências neste teor”, afirma o CNBM.

Para ler a matéria completa da Agência Primaz, acesse: Após denúncias de blackface, UFOP emite nota e causa indignação na comunidade acadêmica.

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