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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Com artistas renomados, Ouro Preto vira “capital do jazz” por uma semana

De 31 de julho a 7 de agosto, a Cidade Patrimônio respirou música, com diversos shows atraindo vários turistas na região central de Minas Gerais

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Com artistas renomados, Ouro Preto vira “capital do jazz” por uma semana
Palco principal do festival foi montado na Praça Tiradentes, em frente ao Museu da Inconfidência | Foto: Ane Souz / PMOP
Ouro Preto respirou jazz na última semana. Com o festival internacional Tudo É Jazz, a Cidade Patrimônio recebeu artistas e turistas de todo o canto do Brasil e do mundo. Pelo centro, foi possível ouvir um som de saxofone aqui, outro de baixo ali. Houve uma enorme movimentação pelas ruas ouro-pretanas, com atrações entre 31 de julho e 7 de agosto.

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Na edição de 2022, o festival completou 20 anos. O Tudo É Jazz nasceu com o intuito de levar turismo de qualidade a Ouro Preto. A criadora do evento, Maria Alice Martins, a convite da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), tinha a proposta de encher os hotéis, os restaurantes e deixar um lastro econômico pela cidade por meio do festival. 

Na época, havia duas opções para essa ideia de evento: dança ou jazz. Porém, devido a dificuldade em se ter um palco estruturado para dança em Ouro Preto, a última temática foi a definida. Inicialmente, o festival acontecia no Centro de Convenções da UFOP. Com o relevante impacto turístico na região, o Tudo É Jazz passou a contar com uma programação integralmente gratuita. A gente achou que é mais importante a democratização do que segmentar. O objetivo do jazz é segmentar cada vez menos e abrir para todo público regional e turístico, de forma 100% gratuita, [com] uma programação de qualidade, tanto musical como de cursos de capacitação”, relatou Rud Carvalho, organizador do Tudo É Jazz.

O festival cresceu de tal forma que acabou expandindo para outras cidades, como Ouro Branco, Itabirito, Congonhas e Belo Horizonte. Durante os dois anos pandêmicos, porém, ele não pôde ser realizado. Ao longo desse tempo, a organização do evento estudou formas de torná-lo ainda melhor. Uma coisa que estamos vendo é que o público está muito assíduo e ansioso para eventos, para estar na rua de novo. Então, a gente está tendo uma receptividade muito legal do público, não só em Ouro Preto, mas também em Belo Horizonte e nos outros interiores. Tanto para os cursos quanto para as apresentações, estamos tendo um público muito atencioso e bacana. É um público que chega, presta atenção no show. Eu acho que é o momento de voltar”, complementou Rud Carvalho.

O festival teve uma enorme adesão, atraindo pessoas de vários lugares do Brasil, além da população local. Antônio Bahia, morador de Ouro Preto, comemorou a oportunidade de poder ir a um festival de jazz gratuito na cidade. “O jazz é vida. É um dos estilos mais requintados que a gente tem em música, em complexidade, em emoção, em história. A importância do festival é resgatar a cultura, mantê-la viva. É a gente poder compartilhar de uma maneira democrática, com todos, uma forma de trazer o que há de melhor em música, quase centenária, viva em nosso meio, num país tão diverso em cultura e conhecimento”, comentou à Agência Primaz.

Homenagens

A 20ª edição do Tudo É Jazz contou com homenagens importantes. A primeira delas foi para Maria Alice Martins, a Biiça, criadora do festival, que faleceu em novembro de 2020, vítima da Covid-19. Adicionalmente, o headliner do dia 5 de agosto foi a apresentação da Jazz Big Band com os convidados Wilson Sideral e Carla Sceno em tributo à Frank Sinatra.

Presente na edição de 2018, com o projeto ‘Wilson Sideral Tropical Blues’, o artista mineiro afirma sua satisfação em retornar ao festival. “Esse realmente era um sonho da Biiça. Eu tive a oportunidade de estar presente em 2018, que foi a última edição antes da pandemia. Foi um show emocionante chamado ‘Blue Hearth, o Blues de Minas Gerais’. […] Estou muito honrado em voltar para essa etapa presencialmente novamente, estamos todos encantados com essa oportunidade de estar aqui, nessa cidade tão icônica, que é Ouro Preto, e que se torna, durante esses dias, a capital do jazz, a capital da música e da arte”, declarou.

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Com artistas renomados, Ouro Preto vira “capital do jazz” por uma semana
Carla Sceno e Wilson Sideral performando durante o tributo ao Frank Sinatra | Foto: Ane Souz / PMOP

Um tributo ao Frank Sinatra era parte dos sonhos da criadora, e para a comemoração de 20 anos do festival, a ideia precisava sair do papel. Para isso, foi chamada a Jazz Big Band, que já faz tal apresentação pelo Brasil há mais de 10 anos. Quando pintou isso aí, eu nem dormi. E quando me apareceu a chance de participar com essa pérola que o Brasil está ganhando, a Carla Sceno, e o Wilson Sideral, que não tem o que falar, uma pessoa do palco, do show business, é um presente que a gente ganhou”, contou Arnaldo Catalan, membro da Jazz Big Band.

Relação com o Jazz

O jazz surgiu entre 1890 e 1910 em Nova Orleans, nos Estados Unidos. É relativamente difícil estabelecer uma definição para esse estilo musical, porém é possível dizer que ele é marcado pela improvisação, o swing e os ritmos não lineares. O jazz tem suas raízes na música negra americana pouco antes de 1850. No entanto, de forma majoritária, os músicos que se apresentaram em Ouro Preto, no Tudo É Jazz, acreditam que esse tipo de música ultrapassou a ideia de gênero musical. 

Para Gabriel Grossi, que se apresentou no dia 6, tocando vários clássicos do rock na gaita, o jazz significa liberdade e uma maneira de enxergar a vida e a música. “Eu acho que o jazz passou do significado original dele, se tratando mais de um estilo norte-americano, de uma coisa mais específica, para algo muito universal, que é uma liberdade que a gente tem ao tocar. Eu acho que o jazz não tem mais fronteiras. Inclusive, o jazz americano se renova muito por meio de agregar estrangeiros, outras culturas e outros sotaques. Nesse sentido, eles são muito inteligentes, em abordar a cultura do mundo inteiro, para somar e dar novas personalidades”, declarou à Agência Primaz

O poder do jazz é tão forte que é capaz de salvar vidas. É o que contou Ana Cañas, atração que fechou a noite do dia 6, com um show em homenagem ao Belchior. Ela, que começou cantando jazz, seguiu na profissão para poder sobreviver. “Saí de casa cedo e fiz vários bicos na época. Um amigo meu perguntou se eu sabia cantar. Eu neguei, mas pensei que, se eu soubesse, poderia comer. Ele me deixou um CD com músicas da Billie Holiday e da Ella Fitzgerald. Eu decorei as músicas, fiz o teste. Gastei meus últimos R$30 num vestido preto, passei no teste, virei cantora do bar e comecei a cantar. Chegou uma época que eu sabia 120 standards de cór. Fiquei alguns anos à noite cantando jazz”, contou. 

Entretanto, Ana acredita que a linguagem do jazz não lhe cabe mais atualmente pois, nesse estilo, a letra fica em segundo plano, dando destaque à harmonia, ao improviso, à esquete e à capacidade melódica. “Cantando Belchior é quase o ponto oposto, porque o Belchior é a letra máxima, a poesia rasgada, aberta na frente sempre. A palavra chega primeiro. São pontos diametralmente opostos, musicalmente falando. Mas eu vejo jazz no samba, no rock. Existencialmente falando, são escolas de vida”, complementou.

Com artistas renomados, Ouro Preto vira “capital do jazz” por uma semana
Ana Cañas cantando Belchior no encerramento da noite de sábado (6) do festival | Foto: Ane Souz / PMOP

Mas a relação com o jazz, como dito anteriormente, não trata-se apenas de métricas musicais. No espectro filosófico, na capacidade de improviso, o início desse movimento, com Charlie Parker, John Coltrane, Dizzy Gillespie, Miles, criou uma escola quando o gênero foi criado por pessoas pretas que, por muitas vezes, não tinham acesso ao estudo e à leitura. Ao mesmo tempo, hoje, esse tipo de música é tocado por muitos brancos da elite, que já possuem o privilégio de estar em uma escola e estudar harmonia.

Eu vejo esse jazz, por exemplo, no Brasil, que a gente tem uma população majoritariamente preta, por isso faço uma correlação com o samba, com as raízes africanas e tudo mais, mesmo sendo uma pessoa branca. Pensando de onde as coisas vêm e como elas pulsam. E é um povo que sofreu e sofre muita opressão. Então, está muito ligado a isso. Se a gente estiver falando desse jazz, eu vejo isso em qualquer lugar, porque infelizmente ainda há hierarquia, privilégios, uma estrutura que funciona em qualquer situação”, aprofundou Ana Canãs.

Jazz e Ouro Preto

Quando o Tudo É Jazz nasceu, o prefeito de Ouro Preto, Angelo Oswaldo (PV), era secretário de Estado de Cultura do governo Itamar Franco. Agora, nos 20 anos de festival, ele é o chefe do poder executivo municipal pela quarta vez. Ele destacou à Agência Primaz o efeito do evento na região central de Minas Gerais, criando um fomento econômico não só na Cidade Patrimônio, como em seu entorno, por meio do turismo. “A hotelaria de Ouro Preto, Mariana, Ouro Branco e Itabirito está toda lotada. Os restaurantes, os guias de turismo, o artesanato, os táxis, as pessoas que trabalham no setor de serviço. São milhares de pessoas trabalhando intensamente porque o Tudo É Jazz tem essa capacidade de mobilizar a economia da região”, declarou.

Para o prefeito, formas de fomentar o turismo, como o festival, são formas de promover a arrecadação a empregabilidade de forma mais efetiva que a própria mineração. “A mineração é muito boa. Traz muitos impostos para o município, mas traz poucos postos de trabalho. Ao passo que o turismo tem uma capacidade de empregar muito maior, porque é uma indústria de serviços. Com isso, nós estamos comemorando a volta do emprego, a melhoria da renda, uma nova dinâmica econômica e melhores condições sociais”.

A Cidade Patrimônio Mundial da Humanidade também encantou os artistas que se apresentaram nos palcos do Tudo É Jazz. “A cidade é maravilhosa e fantástica. Particularmente, já estive aqui algumas vezes, mas com outros artistas. É a primeira vez que venho tocando a nossa própria música, instrumental. Na verdade, é a primeira vez que venho tocando jazz. Realmente, é uma felicidade muito grande. A cidade é histórica. Desde sempre, na escola, a gente estuda a história de Ouro Preto.”, comentou o músico Sandro Haick, à Agência Primaz.

Para Gabriel Grossi, tocar no Tudo É Jazz na cidade mineira teve um sentido ainda mais especial. Isso porque seu primeiro curso de música foi feito na cidade histórica, com o professor Ian Guest, em 1998. Foram duas semanas mergulhando no universo da harmonia e do arranjo que fizeram com que o músico expandisse seus olhares dentro do cenário musical. “Ouro Preto é muito jazz, a cidade tem uma força muito decisiva na minha vida, da minha decisão de ir por esse caminho, de toda minha trajetória que um pouco nasceu aqui. É muito legal, estou muito feliz de estar voltando”, contou.

Arnaldo Catalan não escondeu o seu encantamento com a cidade em sua primeira passagem por Ouro Preto. A energia, o clima dessa cidade… meu Deus do céu! Quero voltar logo aqui! Na minha idade eu espero ter poucas surpresas. Mas aqui é uma cidade que surpreende a cada esquina. Quero ficar um mês aqui”, brincou.

Carla Sceno viu em Ouro Preto uma cidade que emana energia artística de forma intensa. Para ela, as pessoas são interessadas em músicas, em consumir arte e valorizar o artista.É uma experiência sempre fora da curva vir aqui, seja para curtir um festival com plateia, ou para subir e fazer um show com muito carinho. Eu não quero sair de Ouro Preto, eu quero tocar em outro festival semana que vem, por favor”, declarou.

Encontros inusitados

O cantor uruguaio Hugo Fattoruso, que se apresentou na noite do dia 6, levou toda a força da música Candombe, de Montevidéu, para a Praça Tiradentes. Durante o show, foi possível ver uma bandeira do Uruguai na grade, segurada por Gustavo Napoli, que também é um músico uruguaio. Ele partiu da capital mineira para Ouro Preto a fim de  prestigiar a apresentação do conterrâneo. 

Sou da orquestra sinfônica faz 40 anos. Fiquei sabendo que teria esse espetáculo com um grupo uruguaio, não podia faltar. Eu admiro a obra dele (Hugo Fattoruso) e moro em Belo Horizonte. Ouro Preto é uma cidade bem perto”, contou Gustavo.

Gustavo Napoli e Hugo Fattoruso possuem outra semelhança além da nacionalidade: ambos são apaixonados pela música brasileira. “Quando eu morava no Uruguai, já escutava música brasileira, já admirava. Inclusive, muitos artistas iam na época fazer espetáculos no Uruguai, e ainda continuam. São muitos os que admiro, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Djavan”, continuou Gustavo.

Com artistas renomados, Ouro Preto vira “capital do jazz” por uma semana
Gustavo Napoli com a bandeira do Uruguai durante a apresentação de Hugo Fattoruso na Praça Tiradentes | Foto: Rômulo Soares / Agência Primaz

O cantor Hugo Fattoruso não é apenas apaixonado pela música brasileira, como já morou no Brasil e trabalhou com vários músicos consagrados, como Geraldo Azevedo e Djavan. “Geraldo Azevedo foi meu anjo da guarda aqui do Brasil. Ele me protegeu quando cheguei e não tinha nada. Não tinha trabalho, não tinha conta de banco. O Geraldo Azevedo que me ajudou. Outra pessoa que me ajudou muito foi o Djavan. Ele também é meu anjo de guarda”, relatou à Agência Primaz. O músico uruguaio também trabalhou e viajou o mundo com músicos cariocas. “O jeito que fui recebido aqui nesse país, eu vou levar comigo até o caixão, pois fui recebido como um filho. Impossível esquecer”, finalizou.

Seja nos encontros, na música, no jeito de tocar ou na forma de enxergar a vida, o jazz é um conceito aberto. Ouro Preto, que se tornou a capital do estilo por alguns dias, respirou música, arte e turismo no centro do município, tendo um palco na Praça Tiradentes e outro no Largo do Rosário. Com sua programação integralmente gratuita, a Cidade Patrimônio deixou a cultura de forma livre. Afinal, Tudo É Jazz.

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