- Ouro Preto
Estudante que entrou em coma após trote faz relato à Comissão de Direitos Humanos da Câmara
“Isso não é trote, é tentativa de homicídio” diz mãe da vítima durante sessão
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Em reunião virtual ocorrida na tarde desta quinta-feira (27), o estudante Ayrton Carlos Almeida Veras, apresentou seu relato sobre o trote vivido no mês de agosto dentro da república federal Sinagoga, em Ouro Preto. Na presença da mãe, Acsa Regia Araújo Almeida Veras, o universitário denunciou os abusos cometidos pelos republicanos que, segundo ele, culminaram em seu estado de coma. Organizada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal, o depoimento do jovem e de sua mãe, que acompanhou o filho durante a hospitalização, será encaminhado para a Assembleia Legislativa (ALMG), Ministério Público (MPMG) e demais órgãos que possam contribuir na investigação.
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Residente em São José de Ribamar, no Maranhão, a família de Ayrton declarou que não tinha condições de custear a permanência do estudante no município e, para diminuir os custos, o estudante optou pela moradia em uma república da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Calouro do 1º semestre de 2021, ocasião em que as atividades acadêmicas aconteciam à distância, o graduando de Engenharia Metalúrgica chegou à República Sinagoga em fevereiro de 2022, onde ficou até o ocorrido.
No depoimento, Ayrton explicou que foi indicado à república por um ex-morador, que o informou que o alojamento estudantil não aplicaria trotes. Chegando à Sinagoga, o estudante contou que apenas vivenciava a “batalha”, com afazeres domésticos, idas a festas e demais tarefas cotidianas. Com o passar das semanas, as demandas requeridas pelos veteranos — responsáveis pela gestão das repúblicas federais em Ouro Preto — foram aumentando, e o universitário diz passar a “servir de escravo, de garçom” dos moradores da república em que morava e das demais residências federais. “Eu não estava sujeito só a essa república, mas a todas as repúblicas federais próximas”, afirmou.
Além disso, as humilhações passaram a fazer parte do seu cotidiano, e Ayrton chegou a ser chamado de “maranhense safado” pelos moradores. O universitário relatou que cogitou sair da república, mas permaneceu por acreditar ser apenas “uma fase”.
Após passar férias em seu estado natal, Ayrton retornou à moradia, onde passou pelo processo conhecido como “escolha”, quando o aluno calouro se torna morador da república. Em seu relato à Comissão, o estudante detalhou o ocorrido na noite do trote.
Segundo Ayrton, ele foi obrigado a beber uma mistura de água, molho shoyo e cachaça. “Eles que decidem quando a gente pode beber e quando não pode, quando a gente para e não para, eles decidem tudo lá. Eles têm total controle da gente”, comenta. Junto aos líquidos, Ayrton contou que era misturado à cachaça e que, em caso de vômito, ele seria obrigado a tomar a bebida novamente. “Além disso, não deixaram eu jantar. Fizeram eu beber várias coisas, óleo, pimenta, pó de café. [Mesmo] eles sabendo que eu já passei por procedimento cirúrgico, sabendo dos meus problemas”, completou o universitário.
O calouro denunciou que a última lembrança que tem do dia 04 de agosto de 2022 foi de quando os universitários moradores da república jogaram um balde de água com borra de café em seu rosto. O pó foi aspirado por Ayrton, resultando em um quadro de pneumonia por aspiração, sendo necessária a intubação. Segundo a mãe, laudos médicos emitidos pela Santa Casa de Misericórdia de Ouro Preto apontaram também para coma alcoólico e suspeita de sedação por Rivotril. Após 4 dias respirando por ventilação mecânica, o estudante foi extubado, e teve o coma revertido após o oitavo dia de internação.
Acsa Veras, mãe da vítima, também prestou depoimento à Casa Legislativa. Ela explicou que tornou a história pública apenas no dia 19 de outubro de 2022, devido ao estado psicológico do filho. “Ayrton não queria nem ir à delegacia comigo, com vergonha”. A mãe afirmou ainda que o filho foi submetido a uma tentativa de assassinato: “Isso não é trote, é tentativa de homicídio, tentaram matar o meu filho sim”. A família vem sendo acompanhada por um advogado, em Ouro Preto, e o caso está sendo investigado pela Polícia Civil de Minas Gerais.
Ainda em processo de recuperação, a vítima diz que não considera o ato como “trote violento”, mas sim “tortura”. Wanderley Kuruzu (PT), vereador presidente da Comissão de Direitos Humanos, ressaltou que a prática, conhecida como trote, é um tipo de tortura e um “resquício da época da ditadura”.
Estudante expõe outras violações sofridas durante sua permanência na república
De acordo com entrevista concedida ao Jornal O Liberal, durante o exame de corpo de delito, Acsa Veras revelou que foi encontrado um tipo de pomada lubrificante no ânus do estudante, indicando um possível abuso sexual, já que o jovem afirma não ter mantido relações consensuais. Durante a reunião, Ayrton alegou que moradores da Sinagoga mentiram ao dizer que o produto encontrado nos laudos eram pomada para tratamento de hemorroidas, medicamento já usado pelo estudante, mas com uso suspenso devido a melhora nos sintomas.
Em um dos casos de abusos relatados, o estudante denunciou que, mesmo sabendo que ele estava doente, veteranos jogaram espuma de extintor de incêndio sobre ele, “e eu não sem poder fazer nada, eu sem poder falar nada só porque eles eram mais velhos, eram veteranos”, completou.
Dentre as denúncias, Ayrton diz ter provas que moradores da república disseminaram informações falsas a seu respeito, com acusações de consumo de drogas e estupro de três mulheres. A mãe do estudante também é acusada, segundo a família, de estar compactuando com a história por interesses financeiros.
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Vítima convive com sequelas do trote
A mãe da vítima também fez relatos sobre o período em que o filho esteve hospitalizado. Segundo Acsa, parte dos custos, como transporte e acomodação, foram arcados pela Sinagoga, e os demais gastos, como alimentação, foram quitados através de um Pix Solidário organizado pela família.
Segundo Acsa, por indicação dos médicos da Santa Casa de Ouro Preto, o estudante precisaria continuar com acompanhamentos psicológicos, psiquiátricos e de fisioterapia. A família contratou um plano de saúde particular, mas atualmente não possui condições de prosseguir com o pagamento devido aos altos gastos com medicamentos receitados ao aluno.
Além dos novos sintomas decorrentes do coma, o universitário possui histórico médico de ansiedade, problemas cardíacos e intestinais, e fazia uso de medicamentos tarja preta para o tratamento. Agora, o estudante também convive com a limitação dos movimentos no lado esquerdo do corpo e alopecia por estresse (perda de cabelo ou de pelos), decorrentes da internação.
Acsa fez um apelo à toda comunidade acadêmica: “Me ajudem nessa luta, não só por Ayrton, e sim por outros estudantes que vão passar por isso ou estão passando. Meu apelo é só justiça, [para] que não ocorra mais esse tipo de coisa. Que outras pessoas possam morar e estudar em repúblicas sem passar o que passam”.
República acusada nega violência
Após a publicação do Jornal O Liberal, a República Sinagoga usou as redes sociais para negar as acusações de violência contra o estudante. Segundo o post, a república segue as regras impostas pela UFOP de proibição de trotes.
Leia a nota na íntegra abaixo:
“República Sinagoga vem por meio desta informar que tomou conhecimento sobre as alegações publicadas em matéria jornalística do jornal “O Liberal”, na data de 21/10/2022, na qual são feitas graves acusações de suposto “trote” nas dependências da República. Inicialmente, esclarecemos que as alegações são inverídicas e que foram publicadas de forma irresponsável pelo jornal, que não se incumbiu de verificar a realidade dos fatos, reproduzindo deliberadamente acusações sem respaldo probatório como se verdade fossem. A República Sinagoga repudia veementemente a prática de trotes e quaisquer abusos na comunidade acadêmica, reiterando seu compromisso com as regras institucionais do sistema republicano. Informamos também que as medidas cabíveis já estão sendo tomadas para elucidar os fatos e coibir a disseminação de notícias falsas”.
Entidades estudantis se manifestam sobre o caso
Pelo Instagram, a Associação de Repúblicas Federais de Ouro Preto (REFOP) reconheceu as falhas existentes no sistema republicano, e alegou que vem trabalhando para suas melhorias. A associação declarou que não cabe a ela “realizar medidas punitivistas, uma vez que não possui este caráter, sendo de responsabilidade dos órgãos judiciais apurar e julgar realmente os fatos. No entanto, isso não significa que a associação não está buscando, pelos meios devidos, resolver esta situação”.
Também pelas redes sociais, o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFOP, informou que está acompanhando o caso e “que este não se trata de um acontecimento isolado, mas sim consequência de uma política desresponsabilização (sic) por parte da universidade”.
UFOP repudia trote e promete apuração rigorosa
Nessa quarta-feira (26) a UFOP publicou nota, expressando o posicionamento do Conselho Universitário (Cuni), repudiando o trote violento denunciado pela família de Ayrton.
“A Universidade se compromete a viabilizar a apuração rigorosa dos fatos para a aplicação das penalidades previstas, no que couber, de maneira exemplar, e se compromete também a dar continuidade e aperfeiçoar as suas ações educativas para que tais fatos não se repitam jamais”
Segundo a família, a Universidade entrou em contato apenas para averiguar questões referentes aos documentos enviados para a abertura de processo administrativo contra os estudantes envolvidos no caso. A mãe do aluno afirmou também que a UFOP se comprometeu a dar suporte para que Ayrton curse as disciplinas do ciclo básico de engenharia no Maranhão e dará apoio para que ele faça aulas específicas de Metalurgia em outra instituição.