- Ouro Preto
“A gente deita na cama e já pensa: E para o próximo período?”
Universidade impõe pagamento da conta de luz a moradores em vulnerabilidade socioeconômica, que podem sofrer corte de energia
- Isabela Vilela
- Colaboração: Marcelo Gonçalves
- Reportagem atualizada em 02/11/2022, às 11h26
Compartilhe
Estudantes de graduação que vivem no alojamento oferecido pela Universidade Federal de Ouro Preto, na chamada “Vila Universitária”, poderão sofrer com o desligamento de energia devido à falta de pagamento da fatura de luz. Os moradores denunciam a imposição da instituição em relação ao pagamento da fatura e alegam que a universidade exigiu dos representantes a transferência de titularidades das faturas para o nome dos moradores.
*** Continua depois da publicidade ***
***
A transferência de responsabilidade do pagamento da conta começou em julho deste ano, após decisão do Conselho Universitário (CUNI). De acordo com a Resolução, parte da responsabilidade no pagamento da fatura de energia elétrica seria transferida aos moradores da Vila, enquanto a instituição assumiria o valor integral da taxa mínima de consumo. De acordo com os estudantes, a decisão do Conselho ocorreu de forma “arbitrária” e sem aviso prévio aos moradores, que fazem parte do grupo de vulnerabilidade econômica, segundo a classificação da própria Universidade.
Os graduandos alegam que em nenhum momento houve justificativa ou explicação por parte da Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis (PRACE) sobre o motivo da transferência de responsabilidade. “A PRACE não teve um diálogo com a gente. Ela não falou: ‘olha vocês estão consumindo demais, está ficando pesado ‘pra’ gente, o que a gente pode fazer? Isso nunca aconteceu. A PRACE determinou que a gente tinha que pagar a conta”, argumenta Giovana Gouveia, estudante de licenciatura em Ciências Biológicas, residente da Vila.
Segundo os moradores, também não houve sobreavisos para que eles se adaptassem à nova realidade, “nem como a Saneouro fez com a população, por exemplo, que teve a simulação. Nós não tivemos simulação”, relata Rennan Dias, graduando em Ciências Biológicas, que depende das moradias socioeconômicas da UFOP para continuar o curso.
O morador da casa 08 conta que um diálogo entre moradores e universidade, no que diz respeito a ações de conscientização quanto ao consumo de energia, poderia ter amenizado a situação. “Se a PRACE tivesse tido um diálogo com a gente no sentido de: vamos diminuir o consumo que está pesado, senão teremos que jogar a responsabilidade pra vocês, eu garanto que a galera se moldaria um pouco”, argumenta Rennan.
De acordo com dados disponíveis no site da UFOP, a Vila Universitária possui 150 residentes, dispostos em seis das oito casas em funcionamento no campus Morro do Cruzeiro. Para ter direito à permanência nas moradias, o estudante passa por uma seleção baseada em critérios socioeconômicos, através de edital disponibilizado semestralmente pela universidade. De acordo com Graciele Rodrigues Borges de Almeida, graduanda em Serviço Social e moradora da casa 05 da Vila, os residentes do alojamento sobrevivem graças aos auxílios estudantis oferecidos pela própria instituição, além de trabalhos freelancer nos períodos livres. Com a exigência do pagamento da fatura de energia elétrica, a moradora conta que o contexto econômico dos alunos se agrava ainda mais.
Desligamento de energia foi informado por e-mail
No dia 25 de agosto, uma Assembleia Unificada reuniu membros da Associação de Docentes da UFOP (ADUFOP), Sindicato dos Trabalhadores Técnico-Administrativos da UFOP (ASSUFOP), estudantes e movimentos estudantis para discutir sobre os cortes orçamentários e os impactos na universidade. Com a presença de cerca de 200 pessoas, os moradores da Vila Universitária expuseram a situação vivenciada na moradia, indagando sobre a possibilidade da suspensão da cobrança de energia elétrica até a instalação de placas fotovoltaicas.
Gleiciane, que também é titular do CUNI, explica que, ao final da reunião unificada, ficou como encaminhado a instalação das placas de energia solar, com início de funcionamento previsto para o final de agosto de 2022. “Ficou acordado que, quando já tivesse isso instalado, funcionando, nós pagaríamos somente a taxa mínima da luz. Foi um alívio, a gente saiu dessa Assembleia, [dizendo] ‘graças a Deus”, completa. Semanas depois, a primeira fatura foi enviada ao e-mail dos moradores, sem que houvesse a instalação das placas.
Durante a reunião também foi levantado o cenário de um possível desligamento de energia. Em vídeo gravado pelos estudantes presentes, a pró-reitora da PRACE, Natália Lisbôa, afirma que a energia das moradias não seria desligada em caso de não pagamento. Na última semana, porém, estudantes afirmam terem recebido um e-mail enviado pela Pró-Reitoria, informando sobre um possível corte de energia a partir da sexta-feira (28), caso não ocorresse o pagamento da fatura. De acordo com a universidade, o Auxílio Energia, pago por casa no valor de R$290, garantiria o pagamento do boleto.
Auxílio Energia é insuficiente
De acordo com a resolução do Conselho Universitário, o pagamento da fatura de consumo de energia será dividido entre universidade e moradores, através do pagamento da taxa de consumo mínimo pela instituição.
“A UFOP realizará o pagamento referente à taxa mínima de consumo de energia determinada pela CEMIG, conforme Portaria PRACE que indicará anualmente os valores, para cada moradia socioeconômica, a partir da média da ocupação da residência”.
O relato dos estudantes, porém, difere da resolução do Conselho. Segundo os moradores, a taxa desembolsada pela universidade no “Auxílio Energia”, é de R$290,00 por casa, valor visto como “desproporcional” pelos moradores, já que “independente do número de pessoas e independente do valor da conta, ele não é um valor que vai ser alterado”, afirma um dos estudantes.
Os moradores afirmam que o auxílio só foi proposto após as negativas em relação à transferência de titularidade, e que o valor só será pago até janeiro de 2023. “Não sei como a gente vai fazer. Se o valor, com auxílio da UFOP, ‘pra’ gente poder pagar essa conta já foi difícil de conseguir de pagar, imagina quando não tiver esse auxílio e ainda com poucos moradores?”, desabafa Rennan.
*** Continua depois da publicidade ***
Moradores dizem não possuir capacidade de pagamento
A preocupação com o desligamento já afeta o cotidiano dos estudantes, que vivem momentos de tensão. Em visita à Vila, estudantes relataram à reportagem da Agência Primaz os desdobramentos na vida dos moradores após a decisão da Universidade.
“Não houve diálogo e apenas a atribuição da responsabilidade. Entretanto não houve reajuste das bolsas e por mais que pareça um valor insignificante para algumas pessoas, para nós implica em muito, ainda mais se levar em consideração que nem todos recebem os R$400 de auxílio”, argumenta Rennan, bolsista do auxílio permanência.
“Essa história de luz, pra mim, está me deixando doida e adoecida”, relatava Gleiciane que diz estar fazendo uso de antidepressivos devido à situação. Outros moradores que fazem uso de remédios que armazenam refrigerado, como é o caso da insulina (medicamento usado por pessoas com diabetes, também relatam a angústia com o possível desligamento de energia.
Na fatura com vencimento no dia 22 de outubro, com valores entre R$250 e R$1000, apenas uma, das seis casas em funcionamento, teve a fatura paga (quase) integralmente pelo Auxílio. As demais casas que decidiram pelo pagamento, organizaram vaquinhas para completar o valor da fatura.
Na casa 08, composta atualmente por 11 moradores, a conta de R$547 foi paga. “Dada a questão da pressão, a gente acabou optando por pagar essa conta, mas a gente precisou fazer uma vaquinha. Nem todo mundo teve dinheiro para pagar, a gente teve que tirar dinheiro da caixinha, o que já deixa desfalcado para o próximo mês, (…) só ‘pra’ gente não ficar sem luz, porque a gente está em final de período”, expõe Rennan sobre situação da moradia. O estudante completa, apresentando a complexidade do contexto vividos pelos colegas de casa: “Como uma pessoa contribui para a conta de luz e fica sem comer?”.
A gestão do montante enviado pela universidade é feita pelos representantes de cada moradia, que contam ter separado o dinheiro até que a situação seja resolvida. Na casa 05, com 21 moradoras, os auxílios serão devolvidos à Universidade, já que as estudantes alegam não possuir condições de arcar com o restante do valor para completar os R$824 da conta.
Mudança de titularidade também incomoda estudantes
Os moradores do alojamento estudantil relataram que a história envolvendo as contas de energia começou em junho deste ano, quando a Universidade pediu que os representantes enviassem seus dados para efetuar a troca de titularidade das faturas.
“Vocês mandam o nome de vocês, a gente faz a titularidade, transfere a titularidade e a partir de hoje, de agora, é com vocês. Não existiu nenhum diálogo, nem previamente, nem antes de eu ingressar na moradia. Simplesmente, arbitrariamente decidiram, mostraram um papel falando que a resolução CUNI tinha sido alterada e sem ocorrer nem um diálogo”, explica Giovana sobre o pedido feito pela Universidade.
Gleiciane expõe o medo de viver dias semelhantes aos vividos pelos moradores dos alojamentos estudantis do campus Mariana, conhecido como “Moitas”, que em 2019 precisaram arrecadar fundos através de rifas para quitar as faturas de energia elétrica. “Eu já tinha escutado história de luz ter acabado lá e o pessoal ter ficado sem luz, a UFOP não deu nenhum tipo de amparo e eles ficarem lá uns 2 meses sem luz”.
Devido à falta de diálogo com a Pró-reitoria, os estudantes decidiram, de forma conjunta, não efetivar a troca de titularidade. “A gente foi a primeira casa que se posicionou e a gente foi arrastando o restante da vila, para poder falar sobre o direito. Na verdade, o que a gente está vendo aqui é perda de direito”, explica Gleiciane.
A moradora cita o cenário enfrentado pelas moradias socioeconômicas do campus Mariana, que, segundo ela, é uma prévia do que acontecerá em Ouro Preto. “Tem aluno que formou, a titularidade estava em nome dele, ele teve dificuldade em repassar, porque ele não estava conseguindo, não pagaram a luz e o nome dele foi parar no SPC. O cara nem lá ‘tava’ morando mais”, narra a estudante.
Falta de manutenção contribui para aumento da fatura, dizem moradores
Junto à não instalação das placas, os moradores da Vila também relatam a falta de manutenção dos aquecedores, que contribuiria para a diminuição da fatura de energia elétrica. “A gente tem aquecimento solar para água, para evitar gastar o chuveiro elétrico. Só que essas placas de aquecimento, elas não têm manutenção”, explica Rennan. Outro ponto levantado refere-se à não manutenção da rede elétrica das casas, que segundo os universitários, pode estar comprometendo o consumo de energia.
Posicionamento da UFOP (Atualização em 02/11/2022)
Nesta terça-feira (01), a Pró-Reitoria se reuniu com moradores da Vila para discutir sobre o atual cenário. Segundo Petrus Curiel Rigotti, representante geral da Vila Universitária e membro do Comitê Permanente de Assistência Estudantil (Copae), a reunião não teve encaminhamentos sobre o tema. Ainda de acordo com o representante, não houve desligamento de energia em nenhuma das residências da Vila Universitária até o momento.
À reportagem da Agência Primaz, a Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis (PRACE) informou que vem se reunindo com os representantes da Vila Universitária desde julho deste ano. Desde então, a proposta de custeio parcial das contas de energia, pela UFOP, foi aprovada por unanimidade em reunião do Conselho Universitário, alterando as resoluções do CUNI 1.775 e 1.910, que determinam o pagamento integral das faturas pelos moradores.
A PRACE também explicou que o Auxílio Energia Elétrica vem sendo creditado diretamente na conta bancária do representante de cada casa, desde setembro deste ano, com valores que variam entre R$ 178,00 e R$ 298,00 por residência, de acordo com a capacidade de ocupação de cada moradia.
Sobre a mudança de titularidade relatada pelos estudantes, a Pró-Reitoria informou que a questão é prevista nas normativas do CUNI e que “a conta não deve ficar em nome da universidade uma vez que é de responsabilidade dos moradores realizarem o pagamento com a contribuição do auxílio energia elétrica”.
A Universidade também se pronunciou sobre as reclamações dos moradores em relação a incapacidade de pagamento e o não reajuste das bolsas permanência. Segundo a PRACE, mesmo com os cortes orçamentários efetuados pelo Governo Federal nos últimos meses, as bolsas permanência tiveram continuidade de pagamento, e os “bolsistas da Prace seguem com a bolsa alimentação integralmente gratuita, mesmo com o aumento dos valores das refeições para a UFOP (R$6,20 em 2019 e R$11,11 em 2022)”. A Pró-Reitoria ainda apresentou o reajuste feito em julho deste ano no valor das bolsas permanência para alunos classificados na categoria D: “com isso, o menor valor de bolsas praticado pela PRACE não será mais de R$100,00, mas sim de R$200,00”.
No que diz respeito ao impacto psicológico gerado pela atual situação aos moradores da Vila Universitária, a instituição respondeu que com o retorno presencial, os atendimentos psicológicos foram aumentados, assim como as orientações acadêmicas, expandindo o corpo profissional no campus Mariana e ampliando os atendimentos remotos. Por fim, a Universidade reafirmou o apoio aos estudantes com os programas de assistência estudantil: “A PRACE e a PROPLAD [Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento] seguirão trabalhando e dialogando com a comunidade universitária para que, mesmo diante de recursos humanos financeiros cada vez mais escassos, a UFOP continue sendo referência nacional na área de assistência estudantil”.