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Hoje é sábado, 23 de novembro de 2024

Sete anos da tragédia: Exposição da Cáritas homenageia atingidos

Exposição de lambe-lambes faz parte dos eventos que acontecem em memória dos sete anos do rompimento da Barragem de Fundão

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Sobre fundo branco, a logomarca da Agência Primaz, em preto, e a logomarca do programa Google Local Wev, em azul, com linhas com inclinações diferentes, em cores diversasde cores diversas
Atingido, homenageado na exposição, à frente dos integrantes da Guarda de Congo de Nossa Senhora do Rosário de São Benedito
Seu Zezinho, recebendo a Guarda de Congo de Nossa Senhora do Rosário de São Benedito para a Festa do Menino Jesus – Foto: Jornal A Sirene

Um retrato do lado esquerdo da igreja chamava a atenção junto à parede manchada de barro até o teto, protegida por uma barreira de vidro. No mesmo canto repousava uma imagem de Nossa Senhora Aparecida e o presépio montado no chão do altar. Tudo isso foi reconstruído pela comunidade depois do mar de lama que tomou conta do centro de Paracatu de Baixo com o rompimento da Barragem de Fundão, da mineradora Samarco, em novembro de 2015. Levadas pela lama, as peças originais do presépio nunca foram encontradas. Sete anos após o crime ambiental, e sem a reparação das vítimas, os moradores do subdistrito de Mariana ainda retornam ao local nas datas comemorativas para celebrar e manter viva a memória da comunidade.

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Foi assim na manhã do domingo, 18 de setembro, quando a Folia de Reis de Paracatu de Baixo, repetindo os movimentos da Folia de Pedras e da Guarda de Congo de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, entrou na igreja de Santo Antônio. Embalada pelo choro da sanfona, a batida dos tambores e do pandeiro a folia se prostrou diante daquele retrato enquanto os foliões entoavam cantos populares anunciando a sua chegada. O ritual durou alguns minutos e levou às lágrimas muitos dos presentes, entre eles os filhos de José do Patrocínio Oliveira, o seu Zezinho de Paracatu, o senhor que aparece no retrato.

Seu Zezinho foi o capitão da folia por mais de sessenta anos e era responsável por organizar a Festa do Menino Jesus, celebração tradicional de Paracatu de Baixo que acontece no mês de setembro. Falecido em dezembro de 2021, o seu último pedido aos filhos foi de que não deixassem essa tradição acabar.

Interior da igreja de Paracatu de Baixo, com oaredes marcadas pela lama, uma delas estampando a foto de um dos atingidos
Seu Zezinho estava à frente da Folia de Reis de Paracatu de Baixo desde 1961, quando se tornou capitão do grupo – Foto: Pedro Henrique Hudson

Seguindo esse desejo, eles se organizaram e fizeram a festa da forma como o pai sempre gostava. Antônio Geraldo de Oliveira, o Nié, foi quem assumiu como capitão da folia e foi responsável por buscar e matar o boi na manhã de sábado. Muito requisitado pelos presentes que acompanharam a missa e a procissão na tarde de domingo, ele se emocionou ao ver as homenagens que todos faziam para o seu pai.

Efigenia Geralda Teotônio coordenou a preparação do almoço, que segue o mesmo cardápio todos os anos: arroz, feijão, macarronada e o boi que Nié matou com os outros irmãos, e ela cozinhou junto com as mulheres da família por um dia inteiro.

A organização da missa ficou com Maria Geralda Oliveira da Silva, dona da casa de onde saiu a procissão da bandeira na noite de sábado. Antes a procissão saía da casa do seu Zezinho, mas após o desastre o cortejo passou a sair da casa da filha, que fica na parte alta do subdistrito e não foi atingida pela lama.

As homenagens que ocorreram nos dois dias de festas foram apenas algumas das que Zezinho recebeu pela comunidade em que viveu. Nascido e criado em Paracatu, ele só saiu de lá depois do desastre ambiental, quando teve que se mudar para Mariana.

Agora ele é um dos homenageados pela exposição de lambe-lambe (pôsteres artísticos colados em paredes) organizada pela Cáritas Brasileira. O grupo de ajuda humanitária é ligado à igreja católica e presta assessoria técnica aos atingidos desde o rompimento da Barragem de Fundão, em 5 de novembro de 2015.

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Exposição

Seguindo o lema das demais manifestações que ocorreram no dia 5 de novembro, Enquanto há vida, há luta, as imagens expostas abrangem três eixos: fotos da lama, da “vida” e da “luta”. Wan Campos, assessor de comunicação da Cáritas de Mariana, afirma que a intenção é mostrar que, mesmo após sete anos do desastre, os atingidos ainda preservam “a vida, o fôlego e a garra” para lutar pelos seus direitos.

A exposição foi organizada em conjunto com o jornal A Sirene e acontece na fachada de um dos prédios do Instituto de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Federal de Ouro Preto (ICSA/UFOP), de frente para a Rua do Catete. Estão expostas 14 fotografias do acervo do periódico, que é editado pelos atingidos e, desde fevereiro de 2017, faz a cobertura da luta pela reparação e sobrevivência das comunidades. Outros quatro lambes relembram os nomes das 115 pessoas que faleceram nos últimos sete anos sem serem reparados pela tragédia.

A decisão de fazer a exposição no ICSA, de acordo com Wan, se deu pela localização do campus, no centro da cidade — onde há grande movimentação de pessoas —, e por ser um local envolvido com a causa dos atingidos. À reportagem, ele lembrou que desde o início o instituto se colocou como parceiro das vítimas do crime ambiental, o maior da história do Brasil. Além disso, o jornal A Sirene é produzido em parceria com projeto de extensão Sujeitos de suas histórias, do curso de jornalismo, que também desenvolve outras atividades junto às comunidades atingidas.

“Sete anos depois, as pessoas atingidas ainda estão correndo atrás e lutando pela garantia de seus direitos, estamos falando do maior crime socioambiental do país. A decisão de colocar no ICSA [a exposição], vem tanto pela parceria de sempre do instituto com as pessoas atingidas, de abraçar as comunidades, quanto pela questão central de Mariana” (Wan Campos, assessor de comunicação da Cáritas/Mariana)

O diretor do ICSA, José Benedito Donadon Leal, que levou o projeto da Cáritas ao Conselho Universitário da UFOP, reforçou essa parceria e lembrou que a universidade foi palco das primeiras negociações entre os atingidos e o Ministério Público com as empresas responsáveis. Outro ponto que ajudou na aprovação do projeto pela direção da universidade, segundo Donadon, foi a proximidade do tema da exposição com as atividades extensionistas desenvolvidas pelos cursos da unidade acadêmica.

“Então o ICSA está envolvido com essa discussão e assumiu um lado, que é o dos atingidos pela Barragem de Fundão, o lado de apoio, de incentivo. Então, neste momento o ICSA também não poderia não participar de mais um evento, que mostra o que eles querem, o que eles produzem” (José Benedito Donadon Leal, diretor do ICSA)

Parte do material exposto é de autoria do fotógrafo André Carvalho, professor da UFOP e jornalista voluntário da Sirene, que faz a cobertura fotográfica para o jornal e é um dos curadores, junto com Wan, das fotografias que entraram na exposição.

A princípio foram selecionadas cerca de oitenta imagens, que foram então levadas à Comissão dos Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF), onde foi feita a triagem para descartar fotos que fossem consideradas impróprias para a exposição. A única exigência feita pela Comissão foi para que não entrassem fotos que mostrem os reassentamentos.

Para Carvalho, o objetivo da exposição é mostrar a vivência dos atingidos, por isso não faria sentido mostrar um território onde não existe essa convivência. “Houve apenas um veto nas imagens que mostravam o reassentamento, pois como lugar de morada, de vida e experiência ele não existe até hoje”, afirmou ele.

Reassentamento

Em Bento Rodrigues, onde as obras estão em estágio mais avançado e já conta com a assinatura de um termo de compromisso entre a Renova e a Prefeitura de Mariana, menos da metade das casas prometidas foi concluída e os moradores ainda relutam em ocupar esses imóveis. Para Mônica Santos, integrante da CABF, a segurança desses moradores não está garantida e o local ainda funciona como um canteiro de obra, já que menos da metade das obras foram finalizadas e cerca de 3.000 operários ainda trabalham no local.

No “Novo Bento”, o único espaço utilizado pelos moradores é uma quadra escolar onde são celebradas as missas mensais. Enquanto isso, no território atingido, a Igreja das Mercês, que não foi atingida pela lama, se encontra em estado de deterioração devido a obras e explosões da Vale nas proximidades da construção histórica.

Neste cenário em que a Renova começa a entregar as obras dos reassentamentos, Mônica ressalta a importância de ocupar espaços como o do ICSA, onde acontece a exposição, para mostrar a realidade dos atingidos. “As propagandas da Renova são em horário nobre na Rede Globo, enquanto a gente não tem essa oportunidade. Então, ocupar o máximo de locais onde a gente puder mostrar e denunciar nossa realidade é muito importante”, afirmou.

Ainda segundo André Carvalho, outra preocupação que a comunidade manifestou foi a de não excluir ninguém nas homenagens feitas na exposição. Por isso, as homenagens se concentram em expressões comuns para todos das comunidades, como é o caso do seu Zezinho e a Festa do Menino Jesus em Paracatu, que reúne um grande número de pessoas todos os anos.

Além da exposição, a programação do dia 5 de novembro contou com celebrações em Bento Rodrigues, Ponta do Gama e Governador Valadares, que teve sua principal bacia hidrográfica — a do Rio Doce — deteriorada com o rompimento da barragem. Em Mariana aconteceu a Marcha dos Atingidos  e o ato “1 minuto de sirene”, na Praça Gomes Freire, contando com a presença de Horácio Araóz, professor e pesquisador da Universidade de Catamarca, na Argentina, que desenvolve estudos sobre extrativismo e mineração na América Latina. No Brasil ele publicou o livro Mineração, genealogia do desastre, pela Editora Elefante.

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