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Atas revelam como o Ministério da Defesa se empenhou na produção de cloroquina na pandemia
Defesa apoiava indústria que pretendia tornar a Bahia um “case” no uso da cloroquina
- Rubens Valente, Alice Maciel, Caio de Freitas Paes, Laura Scofield, Matheus Santino, Bianca Muniz e Thiago Domenici
- Originalmente publicada em 08/02/2023
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As reuniões do CCOP (Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19) realizadas de março de 2020 a setembro de 2021 foram coordenadas de início pelo ministro da Casa Civil de Jair Bolsonaro, Walter Braga Netto, que logo atribuiu a tarefa ao seu braço direito na pasta, o tenente-coronel reformado do Exército Heitor Freire de Abreu, formado pela Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), então subchefe de Articulação e Monitoramento da Casa Civil. Depois que Braga Netto deixou a Casa Civil e se tornou ministro da Defesa, em março de 2021, o tenente-coronel foi nomeado assessor especial do ministro. De lá seguiu, em 2022, para uma assessoria na Presidência da República.
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Justamente um dos pontos que permaneceram em aberto ao longo de toda a CPI da Covid foi saber de quem partiu a ordem para que o Exército aumentasse a produção de cloroquina por meio do seu Laboratório Químico Farmacêutico (LQFEx). Mais de 3,2 milhões de comprimidos foram produzidos em 2020 – contra zero, no ano anterior. Por ofício, a Defesa limitou-se a dizer à CPI que a solicitação que fez ao Exército atendeu a uma “orientação e demanda” do Ministério da Saúde. As atas do CCOP, contudo, demonstram que a Defesa foi bastante proativa no tema da cloroquina revelando-se, no mínimo, coautora da decisão da produção do medicamento.
Nas atas, o empenho da Defesa pela cloroquina começa a ser registrado no segundo mês da pandemia. Em 4 de maio de 2020, quando o Brasil já contava 7,3 mil mortos pela doença, o representante do Ministério da Defesa, cujo nome não constou da ata, informou solenemente ao conjunto dos outros ministérios: “Acordaram, juntamente com o MS [Ministério da Saúde], a produção de Cloroquina em laboratório”.
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O ministro da Defesa naquele dia era o general Fernando Azevedo, que deixaria o cargo em março de 2021 em meio a uma crise militar. Naquele segundo trimestre de 2020, contudo, a pasta de Azevedo informou a todos os outros órgãos que estava empenhada na fabricação do medicamento ineficaz. O ministro da Saúde era Nelson Teich. Onze dias depois, ele seria substituído pelo general do Exército Eduardo Pazuello.
Poucos dias antes do “acordo” anunciado pela Defesa com a Saúde, em 20 e 28 de abril, Bolsonaro havia desqualificado publicamente as críticas da população e da imprensa sobre o papel do governo na pandemia. “Eu não sou coveiro”, disse no dia 20. Praticamente desde o início da pandemia, o então presidente falava da cloroquina como uma solução para a pandemia. Uma suposta medicação para o tratamento da Covid-19, inexistente segundo todos os cientistas sérios do país e do mundo, poderia acelerar o retorno dos brasileiros ao trabalho.
Em 26 de março, por exemplo, ele disse que a cloroquina, “medicada corretamente, não tem efeito colateral”. Em 21 de março, em sua conta na rede social Twitter, Bolsonaro divulgou que ele próprio e a Defesa decidiram ampliar a produção da cloroquina.
Tornar a Bahia um “case” no uso da cloroquina
Segundo as atas do CCOP da Casa Civil, os militares da Defesa – e os civis do Itamaraty e da Saúde – encamparam a decisão de Bolsonaro.
Em 17 de junho de 2020, um mês depois do anúncio do “acordo” com a Saúde, o representante da Defesa informou na reunião do CCOP que “oxímeros [sic, oxímetros] e eletrocardiogramas são importantes para receitar a cloroquina, estão monitorando essa questão juntamente com o MS [Ministério da Saúde]”. A menção a eletrocardiograma se explica porque, entre os efeitos adversos da cloroquina citados por médicos, estavam os problemas cardíacos. No mês seguinte, a imprensa informou que o próprio Bolsonaro fazia dois exames cardíacos por dia para monitorar possíveis efeitos adversos da hidroxicloroquina.
Dois dias depois, em 19 de junho de 2020, o Ministério da Saúde anunciou ao CCOP que publicara uma “orientação também sobre o uso da cloroquina”.
Àquela altura, inúmeras organizações e especialistas já haviam advertido várias vezes sobre os riscos e a ineficácia do uso da cloroquina no tratamento da Covid-19. Em meados de junho, a OMS (Organização Mundial da Saúde) anunciou a suspensão dos testes com cloroquina.
As atas do CCOP demonstram que a palavra dos cientistas nada importava para os militares da Defesa. Em 3 de julho de 2020, o representante da Defesa informou que no dia anterior havia se reunido com “representante do MS [Saúde], Sindfarma e fabricantes de medicamentos para tratar de fármacos para atendimento precoce envolvendo entre outros fármacos, os antibióticos, a cloroquina e a azitromicina”. Há no país alguns sindicatos de empresários da indústria farmacêutica chamados de “Sindifarma” ou “Sindfarma” – a ata não deixa claro a qual organização se referia.
O engajamento da Defesa com o remédio ineficaz era total. Em 1º de julho, o representante do ministério informou às outras pastas que “a Apsen Farmacêutica S.A. fará a doação de cloroquina para que a Bahia seja um case [exemplo] que possa ser reconhecido em todo o Brasil no tratamento da Covid-19”. A empresa apoiada pela Defesa era uma das principais fabricantes da hidroxicloroquina no Brasil. No ano seguinte, ela informou à CPI da Covid que vendera 58,8 milhões de comprimidos do remédio em 2020. Na época, ela recorreu ao governo Bolsonaro para conseguir importar os insumos necessários, chamados de IFA, para a produção do medicamento.
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Depois dessas várias manifestações em favor da cloroquina, a partir de julho de 2020 o representante da Defesa não volta mais ao assunto, ou pelo menos suas palavras sobre cloroquina não aparecem mais nas atas do CCOP.
Até a entrada do MD na defesa da cloroquina, em 4 de maio de 2020, o medicamento era defendido arduamente por diplomatas do MRE (Ministério das Relações Exteriores) e pela própria Casa Civil. Em 13 de abril, por exemplo, o braço direito de Braga Netto e coordenador das reuniões do CCOP, o militar Freire de Abreu, indagou ao representante da Saúde “se tem previsão da liberação de insumos da cloroquina da Índia”. Os insumos eram necessários para fabricação dos comprimidos no Brasil.
O representante da Saúde “relatou que não tem essa informação, mas vai levantar e repassar ao Heitor”. O representante do MRE apressou-se em explicar que “pela Farmabrasil [associação de farmacêuticas] chegaram ontem 500 quilos de IFA [insumos]” e que “a Índia está ofertando comprimidos acabados (prontos), porém essa decisão cabe ao MS, o qual já foi informado sobre essa oferta”.
O MRE estava empenhado desde o começo da pandemia na obtenção de produtos da Índia no tema da cloroquina. Em 1º de abril, o representante do MRE informou ao CCOP que “estão em tratativas com a Índia, para a aquisição de insumos (hidroxicloroquina) para empresas brasileiras pontuais, para que possam fabricar aqui”. Uma das que reclamava da “retenção” de produtos da Índia era a Farmabrasil, associação que reúne as principais empresas da indústria farmacêutica brasileira.
Em 2 de abril, o representante do MRE informou que o ministério “está atuando na liberação de carga de 530 quilos de cloroquina na cidade de Nova Délhi/Índia”. No dia seguinte, o MRE reiterou ao CCOP: “Sobre a importação de cloroquina, o governo da Índia diz que quer colaborar, mas fato é, que ainda não tem data certa para essa importação”.
Esta republicação é autorizada pela Agência Pública.