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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Sobre infâncias e recomeços

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Foto: Mary Taylor/Unsplash

Ouça o áudio de "Sobre infâncias e recomeços", de Giseli Barros:

O pai chegou mais cedo do trabalho e convidou a esposa e a filha para darem uma volta. Era uma tarde gostosa, fim de primavera. Entraram no carro. A menina tentava adivinhar a surpresa: uma volta pela orla, ou uma ida à lanchonete localizada próxima à escola. Lembrava-se dos brigadeiros enormes, que a mulher sempre deixava expostos na vitrine. Tomara fossem para lá.

Enquanto a mãe iniciava uma conversa sobre os acontecimentos do dia, a criança se distraía, descobrindo as ruas e observando as casas e os prédios de sempre. No entanto, o pai escolheu outro caminho. Quis perguntar para onde estariam indo, mas a conversa lhe impedia a investida. Preferiu, então, fixar o olhar, baixando um pouco o vidro do carro. Aos poucos, as casas ficaram todas para trás. Passaram por uma estrada e ela viu uma construção arredondada bem diferente. Riu, quando o pai explicou o que era e virou para trás para vê-la mais uma vez.

Poucos minutos se passaram até chegarem a um bairro. Desceram do carro. O homem convidou-as para uma caminhada. Ele apontava o dedo indicador para um conjunto de casas de um lado, prédios de outro, um clube, uma escola, supermercado, outro conjunto de casas e a saída para o bairro vizinho. Ela observava a explanação com toda atenção possível. Quando chegaram à rua próxima ao mercado, o pai apontou para uma casa.  A menina procurou vozes, mas só havia os três ali. Ele abriu o portãozinho de madeira. Elas o seguiram. Ele tirou uma chave do bolso e abriu a porta. Caminharam pelo imóvel. Na parte superior, os quartos e um banheiro. A mãe sorriu e disse para a filha que aquele seria o lar deles. A menina, então, teve um pouquinho de medo, pensando nos colegas da escola e no bairro que ela conhecia. Ali, naquela rua, todas as casas ainda não tinham vozes.  

Dias depois, a família ocupou o seu lugar. Viu luzes em duas ou três das habitações. Demorou um pouco para ver qualquer criança e o período era de férias escolares. Aos poucos, os olhos passaram a identificar a rotina e viu, numa manhã, uma criança passar pelo portãozinho que era igual ao seu. Ficou animada, porque a rua começava a tomar a sua identidade de criança também. Como mágica, todas as casas foram se colorindo e, nos finais de tarde, a meninada se divertia no bairro tranquilo. Durante a semana, dividiam-se entre duas escolas, uma delas situada no bairro vizinho. Nos intervalos das atividades, planejavam os encontros, à medida que cresciam. Enquanto uns começavam a adolescer, os mais novos tomavam lugar na algazarra rotineira.

Contudo, vez ou outra, a rota mudava a morada de alguém. Aparecia um caminhão baú e o pequeno portão de madeira se fechava. Demorava um pouco para outra família ocupar o lugar que parecia ter sido feito sob medida para os moradores anteriores. As crianças, talvez, sentissem mais a falta de quem partia, ou os adultos chorassem através das lágrimas delas. Ninguém saberia dizer, mas o tempo, exercendo o seu trabalho, seguia firme marcando os encontros e as despedidas. Os mais próximos trocavam correspondências e telefonavam em datas mais festivas. Assim lidavam com a saudade.

As tardes tomam novos tons. A vida se adapta. Sem planejamento, um hábito permanece entre eles: quando duas crianças brigam, ficam sentadas de castigo ao lado dos adultos. Nesse momento, a calçada é palco para as conjecturas sobre o futuro, mas os pequenos nada entendem disso, pois a vida é o instante interrompido da brincadeira. Os jovens notam os cabelos dos pais embranquecerem, porém estão distraídos demais com seus pares e os encontros da semana. A vida nunca tem intervalos.  

antas estações. Algumas casas já não têm mais os seus primeiros moradores, nem a aparência do bairro é a mesma. Às vezes, algumas partidas são mais definitivas do que outras. Adultos que se despedem, e o portãozinho de madeira fica na memória daquelas primeiras crianças. A calçada silencia por um tempo até a rua contar as suas histórias, colorindo-se de novo.

Em memória de gente querida.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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