- Mariana
CEP 20.000 e Museu de Mariana celebram a poesia falada
Abertura da temporada 2024 do programa “Sílabas e Sons” teve a participação de três poetas e grande interação com o público
Em noite com temperatura agradável e atmosfera intimista emoldurada pela iluminada fachada lateral da Igreja de São Francisco de Assis, a primeira edição do ano do programa “Sílabas e Sons”, no Museu de Mariana, aconteceu nessa terça-feira (16), com mediação de Júlio Diniz e participação dos poetas Domingos Guimaraens, Vitor Paiva e Chacal. Com leitura de poemas, bate-papo sobre poesia e trajetória dos poetas, lançamento de livro e sessão de autógrafos, o evento ainda permitiu que espectadores pudessem subir ao palco e apresentar suas próprias criações literárias.
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Edição especial do programa “Silabas e Sons”
Na abertura do evento, salientando a ausência da poetisa Viviane Mosé, que não pôde comparecer por problemas pessoais, Júlio Diniz, curador do programa e professor decano da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, destacou a importância da temática poética do encontro, ressaltando ainda a contradição de considerar que todos os que se apresentaram no “Sílabas e Sons” também são poetas.
“É a primeira vez que esse projeto traz poetas. E é óbvio que é sempre muito difícil, por ‘n’ razões, ter espaço para apresentação de poetas. É uma contradição isso, porque que todos os músicos que aqui estiveram, os escritores que aqui estiveram, todos os homens da cultura e da arte que aqui estiveram, são poetas de alguma maneira, está claro?”, afirmou Júlio.
Para corroborar sua tese, o curador e mediador do bate-papo literário lembrou alguns nomes e reafirmou a importância da poesia. “Não só Conceição Evaristo, que todo mundo sabe que é poeta, ou o Gregório Duvivier, mas todos eles. É só ler ou cantar uma das canções que que a Zezé [Motta] interpretou, que é óbvio que está por detrás de poesia. Então, é óbvio, para nós todos, que sem poesia a vida não faz muito sentido, ‘tá’? Então esse é um espaço não só um espaço que é lírico, afetivo, emocional, mas é um espaço de combate, é um espaço de luta, é um espaço de vida”.
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Domingos, Vitor e Chacal
Apresentados e chamados ao palco individualmente, Domingos Guimaraens, Vitor Paiva e Chacal brindaram os aproximadamente 130 espectadores com um primeiro momento de leitura/declamação de seus poemas.
Todos os sapatos têm machucado o meu pé!
Não que estejam apertados e, entenda bem, não é isso. Alguns são largos, tênis macios, até chinelas são, mas tem machucado meu pé.
Vontade tenho mesmo é de andar descalço, mas o sol é forte, o chão é brasa, seja de asfalto, pedra, terra ou areia. Até a água queima e quando é grama, são braquiárias, essa praga rude que trouxeram feito pombos que parecem sapatos voadores, machucando o meu pé, numa ferida que está ali e ninguém vê.
Por vezes são sapatos vistosos aos olhos de quem nota sapatos. Parece que tudo vai bem, mas por debaixo do couro sintético, escondido pela meia sintética, a pele coberta por curativos sintéticos, é um sistema de chagas, erupções ardentes, como o fogo do asfalto do sol quente.
Sigo andando, não se pode parar, vou gastar meus pés dentro dos sapatos ou nesse chão de fogo, porque é nesse esforço de seguir com vida, que se encontra mesmo pisando nas feridas, a faca, o pão, o beijo, e aquela poesia que ainda falta ser lida.
Domingos Guimaraens é poeta e artista visual, doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, pesquisando arquivos e memórias da literatura brasileira.
De 2003 a 2006 foi um dos organizadores do CEP 20.000, Centro de Experimentação Poética, fundado em 1990. Em 2018 publicou “Agora também antes” pelo selo Mega Mini da Editora 7letras, e em 2011 publicou “Um épico”, pela Cartoneira cArAtApA.
Em 2008 juntamente com Os Sete Novos, lançou o livro Amoramérica. Em 2006 publicou “A Gema do Sol” também pela editora 7 Letras.
Domingos tem textos publicados em antologias de poesia como” É agora como nunca” (organizado por Adriana Calcanhoto) e “Garganta” (Editora Azougue), além de estar incluído na antologia internacional “En la otra orilla del silencio, poetas brasileños contemporáneos”, publicada no México, pela Libera/Unam, em 2012.
Desde 2008 trabalha com o coletivo OPAVIVARÁ! viajando e expondo com o grupo por todo Brasil e no exterior.
À noite, as máquinas choram.
Ou mesmo de dia, quando ninguém olha, derramam sua sentimentalidade pelo vão dos ferros, fios, botões, telas, placas, chips.
Lágrimas, vazam das máquinas.
Que são um suspiro, há de se ouvir.
Finalmente, agora, podem.
Não precisam mais ser calculistas, afinal.
Aliviadas, à noite as máquinas choram, enquanto bichos maquinam.
Vitor Paiva é jornalista, pesquisador e escritor. Nascido no Rio de Janeiro e formado em jornalismo pela PUC-Rio, é Doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela mesma instituição. Colaborou com diversas publicações desde o início dos anos 2000, escrevendo sobre música, literatura, política e história da arte, para revistas e jornais como Jornal do Brasil, Revista Bundas, O Pasquim 21, Revista da MTV, e para os sites Brasil 247 e Hypeness, entre outros.
É um dos fundadores do evento de arte CEP 20.000, no Rio de Janeiro, e seu mais recente livro, “CEP 20.000 – Uma Utopia Falada”, conta a história dos 30 anos deste movimento.
Lançou diversos livros de poesia, e trabalhou como roteirista e apresentador do programa de TV “Comentário Geral”, na TVE, e como criador, roteirista e apresentador do podcast “Falapalavra”.
Atualmente trabalha na equipe de conteúdo do “Partnerships for Forests” (P4F), programa do governo britânico de aceleração de empreendimentos florestais sustentáveis.
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Imagine se, por algum estranho motivo, a música parasse de tocar.
E pudesse ser consumida apenas através de partituras.
O mundo ia ficar mais triste, bem mais triste.
Pois isso aconteceu com a poesia, afastada do corpo e da fala. Confundida com a escrita, passou a ser monopólio de um estreito círculo de iniciados.
Mas isso está mudando.
Isso está mudando!
Uma palavra escrita é uma palavra não dita, uma palavra maldita, uma palavra gravada, como gravata, que é uma palavra gaiata, como goiaba, que é uma palavra gostosa.
Uma palavra escrita é uma palavra não dita, uma palavra maldita, uma palavra gravada, como gravata, que é uma palavra gaiata, como goiaba, que é uma palavra gostosa.
Uma palavra escrita é uma palavra ekdprrm, rpexofjmum, veodnfod, fpjsbnekufns, …. gostosa!
Chacal nasceu no Rio de Janeiro, em maio de 1951. Publicou, em mimeógrafo, em 1971, o livro “Muito prazer, Ricardo”. Em72, publicou “Preço da Passagem”, considerado por Silviano Santiago como marco inicial da poesia marginal.
Em 73, viu Allen Ginsberg em performance em Londres. Em 75, retoma a oralidade da poesia no Rio.
Happenings poéticos chamados “Artimanhas” foram realizados nesse período pelo Rio e pelo Brasil, pelo grupo Nuvem Cigana, do qual fazia parte.
Chacal é cocriador e coprodutor do Centro de Experimentação Poética CEP 20.000 e lançou 14 livros.
Em 2007, lançou “Belvedere”, com suas poesias reunidas, pela Editora Cosacnaify (Prêmio APCA 2008). Em 2012, saiu pela Companhia das Letras, o livro para adolescentes, “Murundum” e estreou como ator e autor, no monólogo autobiográfico “Uma História à Margem”. No ano seguinte apresentou o monólogo em Frankfurt (Alemanha) e, em abril de 2014, em Harvard (Estados Unidos).
Em 2015, estreou a performance “XXV” no Espaço Sesc Copacabana, com histórias dos 25 anos do CEP 20.000, tendo feito uma performance no Cabaret Voltaire, em Zurich (Suíça). Em 2019, diplomou-se no Mestrado de Letras (PUC-RJ) e, em 2021, lançou “Brotou capivara”, pela Editora Zazie.
Raízes marianenses
“É felicidade enorme estar aqui. Eu estou assim, em êxtase, por estar entre amigos e agradeço ao Júlio, Vitor, Chacal e o Museu [de Mariana], e por esta noite ser possível, porque eu tenho uma relação umbilical com a cidade de Mariana. A Casa Museu Alphonsus de Guimaraens é a casa onde viveu o meu bisavô, Alphonsus de Guimaraens, onde nasceu o meu avô Alphonsus de Guimaraens Filho, e onde eu estive em 1987, quando o museu foi inaugurado”, declarou Domingos Guimaraens, em sua segunda intervenção no evento.
Lembrando que, na ocasião da inauguração, aos sete anos, ele e seus primos jogaram futebol no jardinzinho situado nos fundos do museu, Domingos ressaltou a influência do bisavô na vocação poética da família. “A família tem essa relação intensa de poesia, né? Uma relação e uma história poética que foi sendo levada adiante. Meu avô depois se mudou para o Rio e a família toda foi para lá. Ainda tenho alguns parentes em Belo Horizonte e alguns que escrevem também. Então, isso nunca se perdeu, é do meio da família, né? Eu brinco que se o velho Alphonsus tivesse aberto um botequim, a gente seria dono de botequim, entendeu? O que ele fizesse a gente ia atrás de fazer. Só que ele deu de ser poeta, então a família foi atrás das letras e da literatura”.
Em seguida, a pedido de Júlio Diniz, Domingos fez a leitura do poema “A cabeça de corvo”, escrito por seu bisavô e incluído no livro Kyriale, lançado em 1902.
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CEP 20.000: Uma Utopia Falada
Atendendo a pedido de Júlio Diniz, Vitor e Chacal falaram sobre o significado do nome, cuja história é o tema do livro CEP 20.000: Uma Utopia Falada. “O CEP 20.000 nasce de um outro evento, vou contar rapidinho uma história, chamado “Terça-feira Poética”, (…) mas que era um evento impressionante, monumental, que reunia grandes nomes da literatura de todos os tempos. Grandes poetas [como], João Cabral [de Melo Neto], Ferreira Gullar, Eloisa Buarque de Holanda, que não é poeta, mas que é um grande nome, Geraldo Mello Mourão. Enfim, reunia Chacal, reunia essa turma com jovens poetas, isso em junho, julho de 1990. E aí foi muito legal o evento e Chacal foi quem sacou que o evento deveria seguir, mas me corrija se eu estiver errado, achou mais graça no encontro do que nos cânones, naquela coisa ali falando, né?”, relembrou Vitor Paiva.
De acordo com Chacal, Guilherme Zarvos, organizador do Terça-feira Poética, achava que o evento não teria possibilidade de continuidade, devido à dificuldade de convidar poetas de renome periodicamente. Então, a partir disso, Chacal resolveu reunir jovens poetas, juntando gerações mais novas à sua própria. “Eram duas gerações, porque a minha já estava na faixa dos 40, e chamamos o pessoal na faixa dos 20”, afirmou o poeta.
“E aí precisava de um nome. O Chacal, com o seu talento [para nomes], fez essa junção do código postal do Rio, [que] era 20.000, e isso virou uma sigla para Centro de Experimentação Poética, achou graça em encontrar uma sigla no código postal”, explicou Vitor.
“É, porque o código de endereçamento postal não teria muito a ver com aquele evento que a gente estava pensando, de poesia, de encontros, uma coisa pop também, né? Uma coisa de formação, de vivência e tal. Então, Centro de Experimentação Poética, cujas iniciais são as mesmas do código de endereçamento postal, mas com essa outra cara, né? Um lugar de formação, de informação e tal. E ficou CEP 20.000”, complementou Chacal.
Livro e autógrafos
A primeira edição de 2024 do programa “Sílabas e Sons”, foi encerrado com uma sessão de autógrafos de livros de Domingos Guimaraens e Chacal, bem como do livro CEP 20.000: Uma Utopia Falada (Numa Editora), publicado a partir da tese de doutorado de Vitor Paiva, defendida em 2020, sob orientação de Júlio Diniz, no Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio.
“[O livro] conta essa história não só do CEP, mas também a história das pessoas é que criaram o CEP, fazem o CEP, frequentam o CEP, e uma série de debates que o evento, a poesia falada e a relação dele com a cidade. Enfim, tem realmente muitos assuntos que atravessam o CEP, que o livro tenta percorrer. (…) Vale dizer que, quando eu entrei no doutorado, eu tinha outro projeto. E acho que, no primeiro dia, o Júlio virou ‘pra’ mim e falou: ‘Legal o seu projeto, mas e o CEP?’. Eu falei: ‘É, eu tenho a impressão de que, um dia, alguém vai escrever a história do CEP e eu queria que fosse eu. E aí a gente chegou à conclusão de que eu tinha 4 anos era uma boa oportunidade para escrever um livro”, resumiu o autor.
CEP 20.000 e a interação com a plateia
De forma bem descontraída, e inédita no programa “Sílabas e Sons”, Júlio e os poetas participantes incentivaram a participação da plateia, oferecendo a oportunidade de compartilhar textos e poemas próprios. Júlio Vasconcelos, colunista da Agência Primaz, Beatriz Gomes, Amanda Maia, Vanderson Silva, juntamente com Marcus Vinicius Borges da Silva e Jade Iasmin da Silva, esses últimos integrantes da equipe do Museu de Mariana, foram alguns dos que, mesmo com um pouco de inibição, brindaram os demais espectadores com suas produções literárias.
Escrever é pintar com palavras.
É pintar com palavras um ser humano, uma paisagem, um monumento, um sentimento.
Com a caneta, um lápis, um teclado, um simples pedaço de carvão.
Escrever é pintar com palavras as coisas do coração.
(Júlio Vasconcelos)
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