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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Transformações

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Obras de arte pode ser construídas por transformações de latas de alumínio
Foto: Reprodução/Tricurioso

Ouça o áudio de "Transformações", de Giseli Barros:

Como um pêndulo ensaiado, o corpo é o relógio a despertá-la para mais um dia. Amanhece, pontualmente, integrada à rotina. Com o cômodo ainda na penumbra, admira o minúsculo altar feito por ela, colocado no canto do quarto. Está grata por acordar. Na noite anterior, permaneceu por horas receosa de que a dor intensificasse, mas acordou feliz ao perceber que poderia cumprir com as obrigações. Preparou a bebida cheirosa para acomodar os pensamentos, sacudiu a roupa de cama, examinou a casa, deixando tudo em ordem. Partiu.

Durante a semana, era aguardada para diversas tarefas. A mãe, já idosa, vivia com o filho mais novo. Foi um parto difícil. Ele cresceu dependente da genitora. A mulher sentia-se responsável pelas sequelas de um nascimento tão doloroso. Não comentava com as pessoas, mas também sentia no corpo as marcas daquele dia. Alegrava-se quando a filha chegava, porque uma ajudava a outra a cicatrizar antigas feridas. Por mais de uma vez, pensou voltar para a casa da mãe, mas sabia que o melhor era seguir como estavam acostumadas a fazer. Cada uma ali entendia bem de sonhos e desesperanças. Voltar seria consolidar a falta de um amanhã.

Não deixava de levar um agrado para a família. Sem perguntar o que faltava para eles, voltava sempre com uma sacola. A mãe forjava surpresa, para ficar mais confortável. O filho talvez estivesse alheio à realidade, ou soubesse muito mais do que elas supunham sobre as coisas. Sem combinação, pintavam uma vida mais ou menos feliz.

De lá, ia para os tantos trabalhos possíveis. Gostava mais das faxinas. Preferia casas maiores e com crianças, porque o valor garantiria as despesas com o mercado e remédio. Era pontual e dedicada. Planejava a semana, com tempo disponível também para o trabalho que a enchia de alegria. Ao final dos dias, passava pelos bairros, pegando sacolas de latinhas de alumínio. Recolhia-as nas casas e em alguns comércios conhecidos. À noite, fazia a separação delas. Uma parte era vendida e o restante se transformava em suas mãos. Muitas vezes, na rua, captava olhares desdenhosos. Algumas pessoas a confundiam com os restos descartados, e por isso ela não gostava dos dias de festas, quando conseguia aumentar a quantidade de material reciclável. Era uma intrusa no espaço público. Para aquelas pessoas, a lata já sem valor ainda parecia pertencer a outras mãos que não fossem as dela. O saco plástico destacava o abismo entre eles e escondia as suas habilidades.

Queria apagar essas lembranças. Sozinha, despia-se dos falsos pudores alheios e de julgamentos, criando miniaturas de um lugar em que coubessem outro universo. No início, escondia o que produzia pelas noites vazias, mas resolveu, no aniversário do irmão, levar um presente para ele. Assim, aos poucos, vendo as suas criações colorindo os cantos daquela casa, alegrou a sua também. Passou a receber encomendas tímidas. Comprou tintas e pincéis para sofisticar o alumínio que ganhava formas incríveis. Olhou para si com admiração e descobriu que havia dentro dela um poder adormecido por muitos anos. E, na medida em que as mãos trabalhavam, mudava também por dentro, transbordando sensações que ela estava, agora, pronta para compreendê-las. Não descartava a dor, mas aprendia com ela. Não escondia de si os próprios medos, mas os transformaria em sonhos.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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