Destacamento Blood, o melhor filme de 2020 até agora (e uma pequena ode a um gênio)
Spike Lee lança seu mais novo filme e não tem sutilezas ao falar sobre o papel de soldados negros na guerra do Vietnã
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Ouça o áudio de "Destacamento Blood, o melhor filme de 2020 até agora (e uma pequena ode a um gênio)", de Kael Ladislau:
Uma das consequências mais marcantes da Guerra do Vietnã para a cultura pop é a diversidade de filmes sobre o tema. Há clássicos, como “Apocalipse Now”, que certamente estarão sempre na memória dos mais diferentes fãs da sétima arte. E no último mês, entrou no catálogo da Netflix mais uma obra sobre essa guerra. Dessa vez, sob o comando do diretor Spike Lee: Destacamento Blood.
Antes de falar do filme em si, é preciso uma introdução sobre o diretor, para aqueles menos atentos ao nome. Spike Lee é um dos mais midiáticos diretores da indústria cinematográfica e carrega consigo a marca de sempre abordar em seus filmes a temática da população preta.
Desde seu primeiro grande filme “Ela Quer Tudo”, de 1986, passando por seu maior clássico “Faça a Coisa Certa”, de 89, até chegarmos no recente “Infiltrado na Klan”, de 2018, sempre Lee aborda a temática black com uma verdade, às vezes, brutal.
Lee não tem medo de expor os absurdos que sofrem essa população nos EUA, quando não no mundo. O pior disso é ver que são temas sempre atuais, mesmo quando vemos um filme da década de 80 sobre a população negra no Brooklin.
Agora, com os temas de combate ao racismo mais fortes, seus filmes atuais possuem o timing perfeito para se expandir a discussão e mostrar o quão torpe é se pensar sobre ataques racistas hoje.
Por tudo isso, Lee se tornou um ativista e símbolo máximo de Hollywood sobre o tema (talvez ao lado do também diretor Jordan Peele). Em 2019, quando o seu indicado a melhor filme “Infiltrado na Klan” perdeu para “Green Book”, o diretor deixou o teatro revoltado. Não por ser um mau perdedor. Por ver um filme como o dele perder para um outro que aborda de maneira tão problemática o tema de racismo, com o que se chama de “white savior” ou no bom português matuto “salvador branco”, que é quando um protagonista branco exerce uma “compaixão” (assim, entre aspas) com uma figura negra.
Bom, foi preciso contextualizar Spike Lee e o poder de sua obra para, agora sim, falar especificamente sobre Destacamento Blood. Quatro veteranos negros retornam ao Vietnã para uma nova missão: resgatar os restos mortais de um de seus companheiros e reencontrar um tesouro que eles deixaram por lá na época da guerra.
Um mote perfeito para se discutir o papel do soldado negro de uma guerra icônica na memória estadunidense, seja pela derrota, seja por suas graves consequências. Lee repassa isso com uma “sutileza” (e mais uma vez assim em aspas) de quem questiona, até hoje, por que pessoas negras, em sua maioria, lutavam por uma guerra comandada por brancos? As mesmas pessoas que, na década de 60, ainda menosprezavam essa população marginalizada. Ou resumindo em uma frase do filme, dita por um desses soldados: “lutamos por direitos que não temos”.
É também a faísca perfeita para se falar sobre ícones da luta negra na década de 60, como Malcoln X, Martin Luther King, Muhammad Ali. Tudo ingrediente que faz parte de uma receita bem azeitada do diretor, que conta a história desse resgate que flerta algumas horas com um humor meio pastelão, até ao documental, com cenas reais de movimentos negros históricos e atuais, sem esquecer de cenas violentas e fortes que requer um filme de guerra.
A história mostra que há danos sérios da guerra em todos os lados envolvidos e por mais que o foco sejam os negros, os vietnamitas são colocados, claro, nessa discussão. Há sim consequências até hoje para essa população e Lee não se esquece dela.
Nas cenas de flashback, Lee acerta em cheio com uma brincadeira narrativa muito interessante: a de usar os mesmos atores da linha do tempo principal para as cenas antigas. Sem qualquer maquiagem, vemos em Delroy Lindo (na pele de Paul o que possamos chamar de protagonista e que faz um monólogo poderosíssimo), Isiah Whitlock Jr. como Melvin, Clarke Peters, o Otis e Norm Lewis, Eddie contracenando com Chadwick Boseman (ou o Pantera Negra da Marvel se preferirem) na pele de Norman, o amigo que morreu em guerra e que deve ser resgatado anos depois.
Esse recurso ajuda a enaltecer a figura do amigo morto, uma espécie de líder do Destacamento Blood e com discurso mais alinhado para os movimentos negros da época. A figura de Norman, aliás, é usada por Lee para dizer que, ali, não há heróis ou vilões. Na verdade, nenhum dos quatro sobreviventes têm traços para nenhum desses lados. São quatro pessoas que querem levar o amigo para casa, pegar o ouro e ir embora. Com essa premissa, vem as discussões sobre o papel do soldado negro nessa guerra e até mesmo a sua relação com os nativos do país.
Destacamento Blood ainda brinca com certas referências, como o do já citado Apocalipse Now. Uma trilha bem balanceada que emoldura o ritmo da história contada por Lee. Um filme que mesmo não sendo talvez a obra máxima de Lee, traz o grito do diretor.
Talvez, de toda uma população que precisa ser escutada. E que nós, privilegiados ou não das condições que a vida nos dão, precisamos ouvir. E com Lee, ou você escuta ou você se choca.
Na verdade, os dois!
Assista a Destacamento Blood! Certamente o melhor filme do ano, até agora, e que abocanhará alguns prêmios ao longo da temporada de premiação.
Uma breve ode a uma lenda: Ennio Morricone
No último dia 6 de julho, morreu em Roma o lendário compositor Ennio Morricone. O autor compôs músicas para mais de 500 filmes em sete décadas de carreira. Morricone se consagrou por trilhas inventivas, que misturavam à música clássica e orquestrada, elementos da próprio narrativa do filme, como o dobro de sino, o uivo de um coiote, o toque de um relógio de bolso.
Ennio foi gênio, e mais do que uma rima pobre, essa definição é pouca para expressar todo o vasto legado deixado pelo italiano. Morricone imortalizou obras como Cinema Paradiso, A Missão, os Intocáveis, entre tantos outros. Mas foi com o diretor Sergio Leone, outro imortal italiano, que o maestro construiu sua mais inegável obra-prima: os temas de Por Um Punhado de Dólares, Por uns Dólares a Mais, Três homens em conflito até chegar ao ápice da parceria com Era uma vez no Oeste. Com Leone, Morricone consagrou definitivamente o subgênero do faroeste spaghetti.
Ganhou dois Oscars. Um honorário, pelo conjunto da obra em 2007 e o último, e o único competitivo, pela trilha de Os 8 odiados, de Quentin Tarantino, em 2016. Ennio se foi, mas permanecerá eterno na memória e em obras como “L’estasi dell’oro” essa que você escuta ao fundo.
Descanse em paz, gEnnio!
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