Hollywood e uma otimista e ingênua história da cidade do cinema
Minissérie, que possui uma temporada na Netflix, recria a história sobre a icônica cidade caso a sociedade fosse mais aberta... na década de 40.
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Ouça o áudio de "Hollywood e uma otimista e ingênua história da cidade do cinema", de Kael Ladislau:
Não são raros filmes e séries serem baseados em histórias reais que mudam os rumos dos acontecimentos que conhecemos. Dois exemplos de um mesmo diretor ilustram esse recurso de maneira bem sagaz: Bastardos Inglórios e Era Uma Vez em Hollywood, de Quentin Tarantino.
Bastardos Inglórios dá um novo final ao líder do nazismo e à segunda guerra. Já Era Uma vez em Hollywood, o último filme lançado pelo diretor, no ano passado, conta uma história baseada no trágico assassinato de Sharon Tate, atriz que vivia o auge da fama quando foi brutalmente morta por seguidores do amalucado Charles Manson.
A minissérie Hollywood entra para o leque de obras que recontam a nossa história, algo como “E se acontecesse dessa forma?”, “E se isso tivesse acontecido?”. E como o nome dá a entender, essas perguntas são colocadas no contexto da cidade onde se fabrica ficções e sonhos, em Los Angeles da década de 40.
Criada por Ryan Murphy (escritor de American Horror Story) e Ian Brennan (um dos autores de Glee) a história da minissérie é simples: um grupo de pessoas que envolvem atores, atrizes, diretores e roteiristas tentam entrar nesse universo fabuloso do cinema. E nesse grupo, pessoas que ilustram os mais diferentes perfis de indivíduos e que sofrem dos mais diversos problemas para entrar na indústria em plena década de 40.
Esse grupo é formado por Jack, um inexperiente ator que tenta sair do anonimato para o estrelato, enquanto descobre que será pai de gêmeos. Para sustentar ele e a esposa grávida, faz um “bico” no posto de gasolina de Ernie. O bico, diga-se, envolve atividades sexuais.
Já Archie é um roteirista que vive na prostituição até ganhar uma chance de ter uma história contada na telona, coisa que ele sabia ser muito difícil por ser negro e gay. Ele vive um romance com Rock Hudson (um personagem real), também ator inexperiente que tenta, bem como Jack, o estrelato.
Reymond é um promissor diretor que acolhe a história de Archie, sem saber que se trata de um negro, e é induzido pela namorada Camille, uma atriz negra que vive fazendo papéis de doméstica estereotipadas, a mudar a história de Archie para que a protagonista seja negra e ela poder estrelar o filme.
Com esse contexto explicado, Muphy e Brennan nos entregam uma história que envolve prostituição, abuso de poder, racismo e homofobia. Todos esses problemas, lembro, na década de 40.
A história, que nada mais é do que sobre superação desses temas muito problemáticos ainda hoje, é bem contada e amarrada e muito otimista, que faz com que os personagens tão diferentes entre si, se envolvam em prol de um filme que tem tudo para ser boicotado pela indústria – afinal, é um filme sobre uma negra, escrito por um negro (de novo, em plena década de 40).
Isso nos faz retornar ao ponto inicial dessa crítica: a mudança de uma história real. A década de 40, seja ela em Hollywood ou em qualquer outra parte do mundo, envolvia muita luta, principalmente de negros e gays.
Naquela época, negros de fato eram retratados com muito estereótipos. Espaços para eles no cinema eram raros. Premiações, tão perseguidos pelos personagens, só para Hattie McDaniel (que também está na série, interpretada por Queen Latifah).
Hattie ganhou um Oscar de atriz coadjuvante por “…E o vento levou”. Ela foi a primeira atriz negra a ser agraciada pela academia. E, ainda assim, impedida de entrar no teatro da celebração até ser anunciada vencedora.
Esse parêntese importante sobre McDaniel para dizer que a luta dos personagens principais é muito dura e recheada por problemas que existiram. Para não dizer da causa gay. Rock Hudson, que realmente existiu, nunca assumiu uma homossexualidade, ainda que fosse um boato forte nos bastidores de Hollywood.
Na minissérie, o inexperiente ator (que na vida real estrelou filmes clássicos como “Assim Caminha a Humanidade” e “Sublime Amor”) vive secretamente um relacionamento com Archie. E quando assumem o romance, ele é boicotado pela indústria. Hoje, o tema é melhor abordado pela indústria, mas ainda vive sim um velamento.
É nesse sentido que Hollywood, a minissérie, reconta a história. Ela mostra uma sociedade ainda muito racista, machista e preconceituosa de modo geral. Mas que possuem indivíduos abertos a mudar isso. Coisa, que convenhamos, não existia na década de 40.
Não é um problema contar algo tão ingênuo. Mas é importante lembrar que ainda hoje isso acontece de modo muito, muito tímido. Para se ter ideia, o primeiro Oscar entregue a um roteirista negro aconteceu em 2018, com Jordan Peele, por “Corra”. Uma negra só voltou a receber um Oscar em 1990, com Whoopi Goldberg, por Ghost, também como atriz coadjuvante. Como atriz principal, isso só aconteceu uma vez, em 2002, com Halle Berry em “A última ceia”.
“Moonlight”, filme que ganhou o principal prêmio em 2017, conta a história de um negro e gay. E ele ainda é uma exceção. Um ano depois, venceu Green Book, um filme bem contato, bem feito, mas que é muito problemático quanto ao assunto racismo, já que mostra claramente um exemplo de prestígio branco diante o racismo.
Por isso, Hollywood chega a ser ingênuo na tentativa de recontar essa história. Tarantino, em seus dois filmes citados, reconta a história de uma maneira brutal sobre temas em que hoje a sociedade luta contra, no caso específico do Nazismo em Bastardos Inglórios. Em Era Uma Vez Em Hollywood, ele faz um “e se…” sobre uma personagem que na época todos amavam e que hoje muita gente reverencia.
A minissérie, por sua vez, aborda temas que ainda hoje são mal debatidos. Mas em pleno 2020 ainda vemos faíscas da indústria em reparar a história, real. A ingenuidade da obra não pode ser praguejada, mas é importante que todos nós saibamos que a história de Hollywood, a minissérie, por mais inspirada no real que possa ser, é ficção.
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