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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

A linha de chegada

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espelhos refletem nossa realidade e nos mostram a linha de chegada

Ouça o áudio de "A linha de chegada", da colunista Giseli Barros:

Na decoração da casa, seguiu, cuidadosamente, orientações profissionais para criar um ambiente mais harmônico e que valorizasse a sua personalidade. Adorava o final das tardes, quando retornava para o lar aconchegante. Sem perceber, criou um ritual: música suave, banho relaxante, algo saboroso para a refeição. A mesa era posta, mesmo após horas extenuantes de trabalho. Preferia os dias de fina chuva, nos momentos de relaxamento, para contemplar a noite. Para receber amigos ou alguém mais íntimo, planejava tudo ainda com maior cuidado. Dispensava atenção, principalmente, à limpeza dos cômodos, e caprichava no perfume que parecia exalar de cada parede. Sentia-se feliz.

Ninguém reparou bem no número de espelhos. Colocados em posições estratégicas, eles harmonizavam cada cenário, além de ser um convite para uma parada, mesmo que fosse para uma contemplação tímida do visitante. As pessoas se ocupavam mesmo das fotografias nas paredes. Avessa às redes sociais, como costumava afirmar, sua exposição se dava permanente dentro da própria casa. Uma imagem se destacava cobrindo toda a parede ao final do corredor. A foto refletia vigor e saúde. A musculatura definida, o passo firme. Movimentos capturados, no entardecer, como se tivesse sido programado para o registro. Orgulhava-se dos elogios que recebia. Fingia modéstia.

Quando se via sozinha, comparava a fotografia com o reflexo no espelho e aproveitava para medir cada parte do corpo, estabelecendo novas metas. Era a hora em que os espelhos diziam a ela o que fazer. Não deixaria a vida escapar do seu controle. Escolhia diversos ângulos para treinar sorrisos, a posição para futuros registros entre amigos, agendava o retorno ao consultório. Tão bonita a boca, o nariz, a pele viçosa. O contorno do corpo desenhado no computador, meticulosamente, refeito. Na cozinha, a fileira de suplementos alimentares. Um pote mais discreto, no fundo do armário. Falava sobre bons hábitos. Tudo certo para a vida que pensava ter.

Questionada sobre a sua recusa a perfis na internet, dizia que preferia a privacidade, o contato real com o mundo. Ninguém sabia, porém, das horas investidas na avaliação de páginas alheias, dos vídeos a que assistia através do perfil de um sobrinho, dos rápidos perfis criados e desfeitos, sem deixar vestígios. Comparava-se com todos. A balança no armário do banheiro da suíte. As anotações sobre peso, medidas e correções a fazer. A competição disfarçada na academia. A rotina de esportes. A disciplina impecável consigo mesma. Era admirada. A juventude não lhe escaparia. Novos tempos. Novas formas de viver. Seria longeva e bela, de acordo com os seus altos padrões.

Numa linda tarde, vestiu-se para cumprir a agenda do dia do autocuidado. Faria em breve uma resenha com os amigos. Mais uma vez, organizou a casa, perfumou o ambiente, saiu, levando uma foto junto de anotações as quais não poderia perder. Sentiu o corpo queimar por dentro. Tentou pegar água para se hidratar. Perdeu o controle dos movimentos. Retomou as horas do dia e nada parecia estar errado. O procedimento naquela sala branca era seguro. Seus suplementos eram seguros. Sua vida era, definitivamente, segura. Estática, sem conseguir falar, via apenas o entardecer abraçar a noite, silenciando tudo à sua volta.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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