Loucura concebida é esquadro de normalidade

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “editoriais”

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Pardais cantam louvores em minha janela. Amanheci saudade. Nuvens em expansão acobertam o sol.

Abro a janela, um pardal entra batendo asas, pousa na cômoda coberta de poeira. Dobro as cobertas. Faz frio, venta, ainda não choveu. Não há planejamentos pautados. Talvez eu limpe o quarto, faça café.

Caminho dentro de casa, sorrio dentro de casa, choro dentro de casa, leio dentro de casa… Do céu ao inferno é mais tênue do que fio de navalha. Louco é quem esquadrinhou a normalidade. Fecho-me em mim. Miro o teto por minutos.

Computador, celular e televisor desligados. Minha conduta pertence ao acaso. Vivo em conflito com a coerência cotidiana. Pregaram Cristo na cruz. Não explico a crueldade por meios técnicos ou organicistas. Justiça é pautada nas infrações da lei. Pessoas boas não são santas. Espalho grãos de canjiquinha para pássaros.

Ninguém gritou nem fez birra. Canso-me de ouvir drama que não seja poesia. Revelei meu pranto à brisa. Fecho-me a diálogos maldosos. Prefiro papear com montanhas e brumas. Epifania da rosa amarela entreabriu no quintal. Do início ao fim: ciclo fechado.

Lembro-me dos vasos, da cantoria, de Vida. Fiquei sentida com o estrago do furacão pandêmico. Apunhalada de falso amigo é morte consumada, sem direito à defesa. Quem aconselha é companheiro.

Morre gente todo dia. No auge da pandemia todo cuidado é mixaria. Leio algo sobre a loucura. Temos um quê esquizofrênico. Vivo quase meio século sem pressa. Respiro ar frio das manhãs geladas. Canto de galo desperta meu sono petrificado.

Recordo-me do sonho de voar céus: liberdade! Sonhos são cargas emocionais armazenadas no inconsciente. Não deixei de lutar contra a imbecilidade diária. Tenho dó das lamentações do guri que chora pelas aulas remotas. Ouço mais choramingos do que outrora. Ausência de contato físico entristece. Saudade descomunal da professora. Saudade, pedra bruta no pulmão d’alma. Menino grita, revoltado. Pai chora ausência permanente da esposa. Choro do lado de cá.

Não limpei o quarto, fiz café. Permaneci observando o céu. Cinza chumbo escuro. Quando eu era menina caçava monstros e anjos nas nuvens. Céu era lugar onde vivia gente grande, inalcançável. Vivo duras realidades. Crio novos atalhos para continuar a caçar monstros e anjos.

A praticidade das relações cotidianas desumaniza. Técnico demais, amoroso demais, toda exacerbação é mal. Quase perdi a paciência por um triz de prosa recalcada. Rezei poesia para acalmar a alma. Conclui especialização em ouvir o choro do outro.

Recolho excrementos das maritacas, tranquilamente. Nuvens escurecem. Tarde abocanhada pela entrada da noite. Anoiteci esperança. Amanhã recolho dejetos dos morcegos; limpo quarto e banheiro. Fiz café para hoje e amanhã. Esqueci o bule de alumínio na geladeira. Guardei três vasilhas que servem para nada.

Abro as cobertas. Faz frio, não venta nem chove. O menino parou de chorar; creio que dorme com os pardais no quintal. Antes de fechar as janelas, toco as estrelas com as pontas dos dedos.

Loucura concebida e particularizada é de quem esquadrinhou a normalidade.

(*) Andreia Donadon Leal é Mestre em Literatura pela UFV e autora de 16 livros; Membro efetivo da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais e Presidente da ALACIB-Mariana

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