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Hoje é quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Olho mágico

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Olho mágico

Ouça o áudio de "Olho Mágico", da colunista Giseli Barros:

Quando criança, acostumou-se com alguém da casa demorando diante da porta, mesmo que a campainha gritasse de forma insistente. Não sabia ao certo como era possível ver através de uma peça cravada num bloco de madeira. Porém, foi entendendo, lentamente, que era preciso esperar um pouco antes de tomar qualquer decisão. Em algumas situações, o silêncio se fazia longo, até que a outra pessoa desistisse de esperar. Os passos se distanciavam pelo corredor e os únicos percebidos vinham das outras residências.

Costumava passar as tardes dentro do quarto. De lá, tentava participar da vida que acontecia fora das paredes conhecidas. Ansiava por qualquer acontecimento. No entanto, geralmente, a conversa parecia ser a mesma dos dias anteriores. Três vozes conhecidas tinham hora marcada. Duas delas se destacavam, enquanto a outra pouco se fazia notar. A sua cama ficava do outro lado, longe da janela. Assim, para que pudesse enxergar o exterior, usava um pequeno banco para se equilibrar. Via outras poucas janelas. Com muito esforço, alguns carros no estacionamento. Tentava imaginar o rosto de quem se dirigia até a escada. Com medo de ser repreendido, sempre se escondia quando alguma cortina revelava um dos vizinhos. Temia o severo castigo.

A rotina era a mesma de todos os dias. Saía cedo para a escola e voltava direto para o almoço e as tarefas. Raramente a TV era ligada. Somente o olho mágico podia bisbilhotar o outro lado. Era ele o responsável por afastar quem desejasse chegar. As crianças não iam ali bater. Os encontros aconteciam apenas nos 20 minutos de recreio. Não compreendia bem o regime em que vivia, mas mantinha a disciplina do que fora aprendido.

Sem outra opção, cresceu.

Não podia esquecer do dia em que, pela primeira vez, pôde experimentar com as mãos e os olhos a peça onipotente cravada na madeira maciça. Sentiu os pulmões encherem de ar. O coração bombeava o sangue com uma força impressionante. As mãos suavam. Chegou bem próximo da porta. Ficou inerte. Não sabia se deveria estar ali. Deu mais um passo. Timidamente, acariciou o objeto, tendo atenção ao trabalho tão bem realizado. Respirou o cheiro da madeira e colou o seu corpo por inteiro, fazendo, então, parte de tudo. Só depois de uns instantes é que teve coragem de encarar a lente desafiadora. A partir daquele momento, era cúmplice. Integrava-se à tríade da qual não poderia mais desfazer o elo.

De repente, tudo parou. Escuridão. Ouviu passos se aproximarem. O toque da campainha ressoava alto em seus ouvidos. Prendeu a respiração. Quis disfarçar o seu embaraço. Mesmo insistindo, não conseguia atribuir forma ao outro. Um vacilo e estaria liquidado. O suor escorria pelo rosto. Forçou mais uma vez a visão. A campainha. Receava ser descoberto. Aguardou. Permaneciam incógnitos. Enquanto a luz começava a dar lugar para que a silhueta se desenhasse do outro lado, aspirou, talvez pela realidade criada, o perfume singular de uma imagem que nunca mais esqueceria.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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