Conversando com a chuva
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Ouça o áudio de "Conversando com a chuva, da colunista Andreia Donadon Leal:
Chove, com a graça de Deus, chove! Chove lá fora; dos meus olhos também chove. Caem gotas generosas de lágrimas. Vem o cansaço. O trabalho foi longo e penoso, sem conquista e restituição, com o retrocesso tradicional da exploração feminina no campo profissional; afinal, quem trabalha sem remuneração é vítima de exploração trabalhista ou trabalho análogo à escravidão. Deus recompensa quem morre de trabalhar. Não há mal que prevaleça até o fim dos tempos. Por isso, Deus destruiu Sodoma e Gomorra. Era tudo no desrespeito… Barulho de gotas da chuva caem no chão de cimento. Lembram-me pedrinhas miúdas que eu jogava no rio na época da infância; elas deslizavam feito zigue-zague fazendo círculos nas águas que se abriam. Que espetáculo divino! Pai me ensinou estas brincadeiras que deixavam a gente feliz. E este barulho repicado da chuva batendo no chão de cimento, me remeteu a tempos de ouro. A gente não percebe que o tempo passa feito tornado suave sem levantar poeira, sem fazer barulho, sem estragar nossos muros internos e externos. Eu não vi o tempo passar, o tempo correr rápido demais e, de repente, meus pais foram embora. Eu já sabia que eles iriam, mas não tão de repente; um sem aviso prévio, outro com aviso durante anos, aos pouquinhos. E tudo passa. De tempos em tempos, você sai de casa, casa-se ou fica solteiro, mas em outra casa; abrem-se convívios com outras pessoas. Nascem pessoas, morrem pessoas; e não tão depressa, um a um vai mudando de rumo, de cidade, de grupos, de planejamentos. E nem mais do que de repente, entram outras pessoas no círculo do convívio. Seus pais foram para outro plano; os encontros com os irmãos tornam-se raros, pois a vida é assim mesmo. Se não esquenta, esfria. Se ninguém convida para um café ou almoço, está tudo na mais perfeita ordem. Os planos não são os mesmos. Os afetos familiares continuam incrustados, mas as prioridades não são as mesmas. Mesmo de madrugada, a rodovia tem sempre um carro indo e vindo. A poça da chuva se mistura com o toque do pneu no asfalto. E de repente, já não escuto o barulho. Sinto cheiro da chuva. Um friozinho molhado embaça o vidro da janela do quarto. Penso na minha inutilidade. Trabalhei, levantei bandeiras, chorei por algumas inconsistências. Amanhã, depois da chuva, vou mudar de planos. Quem sabe de casa ou cidade. Vivo num território rodeado de cercas. Cercas de afetos e desafetos; até creio que conheço todos daqui. Sinto no ar gostos e desgostos. Olhos são portas dos sentimentos alheios. Sinto olhares repletos de afetos, outros enviesados. Sinto, e isto beira ao absurdo, de quem nasceu aqui, e crê piamente, que tem mais direito dos que não nasceram, mas estão aqui há duas, três, quatro ou mais décadas… E quase acredito no discurso que se veste de xenofobia. “Pois, esse povo de fora não tem credibilidade para falar.” Veio de fora, acha que é daqui… Quase, por um triz de pensamento, creio que nem sou daqui; nem sei por que vivo aqui, pois não sou daqui. Devo pertencer a território alheio. Até creio que invadi. Não, não. Passou da hora de compreendermos que naturalidade não é sinônima de cidadania. Se estou aqui, vivendo, consumindo, pagando tributos, tenho direitos garantidos pela lei. Deparo-me com um decreto que me cerceia direitos. E decreto municipal vale mais do que lei estadual ou federal? E em cada esquina uma voz legítima, de filho legítimo, reclama da falta disto, da falta daquilo, do erro recorrente, do que deveria ser feito, e isto e aquilo, que quase creio que quem aponta os erros deveria consertar tudo que está errado. E paro minha linha de pensamento. Vivo numa ilha cercada de olhares. Os olhares são as cercas, que bem poderiam abrir novas portas; quem sabe prantos virem poesia? Quem sabe nos unamos numa só voz? Daqueles que nasceram no território e aqueles que vivem no território? Deus não tem naturalidade, é universal! O toque suave da chuva retorna. Converso com a chuva, que caminha sozinha hidratando todos os asfaltos.
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