O homem
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Ouça o áudio de "O homem", da colunista Giseli Barros:
Às vezes, sem uma explicação aparente, saía em silêncio. Não planejava os caminhos, porque conhecia todas as ruas. Quando as pernas exigiam, parava momentaneamente, observava o entorno e interagia com um passante qualquer. Falava coisas que soavam desconexas. O outro não se esforçava para entender as palavras que escorregavam no vento. Sabedor da ignorância alheia, capturava sílabas, que depositava, com cuidado, nos bolsos de um casaco gasto. Sorria de forma despretensiosa, enquanto gesticulava em suas palestras, esquecendo as horas. Quando as casas começavam a brilhar, retornava para o início de tudo. Comia o seu prato de todos os dias. Tomava o café sempre novo da velha cozinha com fogão a lenha. Por fim, a água quente da serpentina adormecia os seus pensamentos, enquanto lavava o corpo exausto.
Por um tempo, permanecia no mesmo lugar. Gostava de tocar as paredes de cada cômodo, como se descobrisse algum segredo. Deslizava as mãos pelo relevo desigual. Foi na infância que seu pai havia levantado aquela morada. Lembrava-se de ter ajudado aquelas mãos a carregar os tijolos de barro. O homem lhe falava sobre como o sol se esconderia ao final do longo quintal de muitas árvores. Tentava, com seus pés ainda muito pequenos, medir de um lado a outro os espaços que seriam ocupados por cada um deles. Eram poucos. Somente seis pés bateriam naquele chão grosseiro. O pai ensinava ao filho o tempo da espera.
Aos poucos, o quintal estreitou-se com a casa. Cabelos brancos e um olhar pesado moldavam o semblante do homem que contava histórias bonitas. A mãe mantinha a mesma cadência de antes, o mesmo rigor das horas. Ele não percebia as suas pausas, porque as roupas dançavam, todas as manhãs, hasteadas na corda feita pelo pai. O café, a vassoura no chão de terra, a permanência de cada um em seu lugar. Embora a vida acontecesse, admirou-se ao perceber a sombra insistente em torno das paredes que lhes sustentavam. Uma confluência de sons abafava a voz ainda firme que construía memórias. Passou, então, a escutar de mais perto o que ele dizia. E o tempo parou.
Pela primeira vez, chamou-lhe a atenção a aparência gasta da casa. Somente a deles forjava resistir ao que ele inevitavelmente perdia. Pegou, então, o agasalho esquecido no prego do quarto de casal e saiu para saber se ainda estaria ali. Não teve para quem contar de onde viera. Observava a agitação da cidade e como as pessoas se desvencilhavam umas das outras. Imitou a corrida pelos sinais. Voltou outras vezes. Quis reconhecer os seus passos na irregularidade de tantos outros. Buscou acertar o ritmo. Acelerava. Treinava de forma insistente. Quando chegava mais perto, um esbarrão o afastava. Algumas vezes, um olhar severo o encontrava e logo fugia. Passou, então, a pegar as palavras para guardá-las. Parecia-lhe um desperdício tantas histórias partidas. Achava graça das falas misturadas. Havia herdado a arte de contar e isso era o que deveria fazer. Expandia os movimentos. Aumentava a voz. Em algum momento, as velhas paredes também não mais existiriam e sentiria bem longe o início de tudo. Era o tempo da espera. Da memória. Do homem.
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