O cooperativismo como forma de salvar a economia de Mariana

Este texto faz parte da série “12 formas de deixar a economia de Mariana saudável após a pandemia”.

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “editoriais”

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Ninguém aqui é empreendedor de porra nenhuma. Nóis é força de trabalho nessa porra”!

Responsável por um dos maiores movimentos iniciados no Brasil em 2020, o dos Entregadores Antifascistas, Paulo Lima, o Galo, é o autor dessa frase que não apenas representa bem o cenário econômico atual do país, como também o de boa parte do mundo ocidental.

O breque dos apps

Tidos como “empreendedores parceiros”, os entregadores de aplicativo, assim como os motoristas do mesmo segmento, vinham há anos reclamando da forma como empresários da economia do compartilhamento (ou Gig Economy) lidam com sua força de trabalho. E tal como a lista de coaches que não fazem ideia do que estão falando, a de reclamações dos trabalhadores contra esse novo modelo econômico não é nada pequena:

Com tudo isso em mente, não é de se admirar que grupos, como o dos entregadores antifascistas, estejam lutando contra o discurso do empreendedorismo que grandes empresas tentam vender para o público. Inclusive, é bom lembrar que mesmo tendo esse total descaso com seus colaboradores e recebendo investimentos milionários, grandes empresas não costumam refletir o seu valor de mercado na qualidade dos serviços, vide os inúmeros casos de assédio ligados ao Uber, de falta de qualidade nas entregas do iFood e até de donos de pequenos restaurantes que vem relatado problemas para fechar as contas por causa da maneira com que os sistemas destacam as empresas dentro dos apps.

Então quer dizer que a tecnologia nos trouxe um futuro mais horrível do que havíamos pensado? Estamos fadados a lidar com algo pior do que ter de ligar várias vezes para o tele pizza e pegar um táxi com corrida mega inflacionada? Como você pode imaginar a resposta é: não.

O problema aqui definitivamente não é a tecnologia e si, mas a maneira individualista que foi nos ensinado o empreendedorismo moderno. E por isso devemos voltar a dar chance para um modelo de colaboração bastante antigo, que se atualizou bastante com ajuda da internet, vem salvando a economia vez após outra e ainda é pouco aplicado em Mariana: o cooperativismo.

Uma breve história do cooperativismo

Apesar de alguns considerarem a Fenwick Weavers’ Society, da Escócia, como sendo uma das primeiras cooperativas a surgirem no mundo (em 1761), as principais com sistemas autogestionários só deram as caras mesmo um século mais tarde em lugares como França e Grã-Bretanha, berço da primeira Revolução Industrial.

Nelas os trabalhadores se articulavam tanto para movimentar greves e manifestações, quanto para sugerir e experimentar alternativas econômicas (indo da produção e comércio até consumo coletivo) que foram ganhando força à medida que o proletariado avançava politicamente como classe. Um bom exemplo que temos do período são as trade-unions inglesas, que funcionavam como associações responsáveis por combinar ações de caráter sindical e, ao mesmo tempo, estimular a organização econômica dos trabalhadores.

Cooperativa à brasileira

Aqui no país tivemos alguns exemplos de cooperativas que tentaram surgir aos moldes dos europeus, como a Colônia Cooperativa Tereza Cristina, fundada em 1847 pelo francês Maurice Faivre junto com outros estrangeiros recém chegados à região. Porém, apenas na reta final do século XIX tivemos as primeiras cooperativas oficiais do país, como foi o caso da Associação Cooperativa dos Empregados da Companhia Telefônica.

Colônia Thereza: comunidade socialista durou 11 anos - Foto: Arquivo Gazeta do Povo

Com a chegada dos militares ao poder, houve um controle maior do Estado sobre as cooperativas, acabando com qualquer tipo de modelo de autogestão e intensificando o foco no segmento do agronegócio, algo que só foi mudado com a redemocratização do país, fazendo surgir novos nomes, como o do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).

De acordo com o professor André Nunes de Souza, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), “além de mobilizar trabalhadores em prol da reforma agrária, e educar seus adeptos, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) vem organizando cooperativas em áreas de assentamento. As primeiras cooperativas de produção agropecuárias (CPA) foram formadas em 1989. Além dessas, há também cooperativas de crédito e de prestação de serviços no âmbito do movimento, totalizando hoje 86 cooperativas espalhadas em nove centrais estaduais de cooperativas dos assentados (CCA), todas congregadas nacionalmente na Confederação Nacional das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab)”.

O mito do self-made man

Agora, depois de quase 900 palavras, acho que finalmente chegou a hora d’eu explicar melhor o que, afinal, é o cooperativismo. Pois bem, o cooperativismo é um sistema que valoriza a colaboração e a associação de pessoas ou grupos que tenham os mesmos interesses, a fim de obter vantagens comuns em suas atividades econômicas.


Indo um pouco mais longe, segundo a OCB (Organização Nacional das Cooperativas), “o cooperativismo visa muito mais as necessidades em grupo que o lucro, buscando uma prosperidade conjunta”. Por isso esse sistema não consegue andar tão em sociedades enraizadas no mito do self-made man.

Podendo ser traduzido para o português como “o homem que se fez sozinho”, este termo é 100% estadunidense e tem um enorme foco no individualismo e na autossuficiência, o que por sua vez não condiz com a realidade, já que dificilmente um empreendedor conseguiria produzir e administrar todas as pontas de um negócio sem contar com a mão de obra de outras pessoas.

E se você não concorda comigo, talvez possa concordar com alguém que por um bom tempo foi visto como um grande machão do tipo que se fez por conta própria e hoje dispara as mesmas críticas ao estilo self-made: Arnold Schwarzenegger.

Nenhum de nós é capaz de conquistar as coisas sozinho. Ninguém. Nem mesmo eu, que interpretei o Exterminador e voltei no tempo para salvar a raça humana. Nem mesmo eu, que enfrentei e matei predadores com minhas próprias mãos”, diz o famoso tira de jardim de infância e ex-governador da Califórnia.

Acreditar nessa ideia do cada um por si só fez chegarmos à marca de 40,7% da população trabalhando na informalidade (dados de fevereiro, de antes da pandemia do novo coronavírus) e termos em Mariana um índice altíssimo de má distribuição de renda.

Saindo do espectro individualista do empreendedorismo, pensar no cooperativismo — ou até mesmo em maneiras mais cooperativas de atuar dentro de empresas tradicionais

— como forma de se mobilizar e de fato empreender, não só pode ser uma boa saída para o estado atual das coisas como já tem funcionado há décadas em diversos locais. Mas isso será um papo para a próxima parte dessa coluna, que vai ao ar daqui há 15 dias.

Agora é hora de pensar em uma característica bem local e que tem emperrado o surgimento de ideias mais cooperativas em Mariana: o gavetismo.

Gaveteiros no divã

Apesar do Aurélio não querer dar na cara, todos sabemos que quando ele diz que Gaveteiro é uma “alusão pilhérica aos habitantes de determinada região de Minas”, ele está se referindo aos marianenses. Ninguém aqui tenta esconder isso.

E não faltam motivos para termos o histórico: alguns dizem que é porque Ouro Preto, por ser uma cidade bonita, fazia com que o estado deixasse Mariana, considerada mais feia, escondida em uma gaveta, outros porque em uma competição entre Mariana, Ouro Preto e Sabará, onde a vila com maior quantidade de ouro subiria para o patamar de cidade, Mariana escondeu parte de sua fortuna em gavetas para não mostrar para os competidores seu verdadeiro potencial.

Há quem diga que o termo surgiu porque os antigos escondiam parte de sua escassa comida em gavetas para não dar às visitas. Além dessa versão, existem pelo menos outras duas onde o lance era esconder comida (seja de escravos ou coroinhas).

Todas essas versões são conhecidas em maior ou menor grau pela população e aceitas como sendo parte de sua formação cultural. Mas o que isso pode representar mais a fundo?

Somos (infelizmente) uma população self-made

De acordo com a publicação Discurso, identidade e Memória, da pós-doutora Simone de Paula dos Santos e do mestre William Augusto Menezes, uma maneira mais fácil dos marianenses aceitarem o apelido, é quando enxergam em sua história algum traço de modéstia — no caso daquela onde a comida é escondida por não haver muito em casa —, porém, apesar de saber de outras versões, a comunidade pode negligenciá-las por representarem características mais negativas — como a avareza ou a subordinação, nos casos envolvendo Ouro Preto.

Em ambos os casos a questão é que o marianense se coloca como sendo um personagem pouco colaborativo, seja porque não sabe como compartilhar recursos, ou simplesmente porque acredita que se dará melhor atuando de maneira unilateral. Um verdadeiro caso de self-made city que não tem se feito tão bem quanto poderia.

Durante séculos onde nosso território foi explorado, boa parte do capital escoou para fora de Mariana, seja para a coroa portuguesa, para os donos de terras que não eram daqui ou por trabalhadores que vieram de fora e não pensaram (ou quiseram) criar algo em solo marianense. Tudo isso continua acontecendo hoje e com o aval de quem só faz o seu.

Poderíamos ter uma cooperativa de motoboys criada por motoboys; uma cooperativa de agricultores familiares; uma cooperativa de motoristas particulares que tivesse seu próprio app; nossa cooperativa de produtores de leite poderia estar funcionando há anos; poderíamos ter acordos cooperativos intermunicipais de peso; poderíamos ter aderido ao plano Minas Consciente, como Barra Longa, Conselheiro Lafaiete, Itabirito, Nova Lima, Ouro Branco, Ponte Nova, Rio Acima e, claro Ouro Preto, para ter a possibilidade de flexibilização das medidas de isolamento social de forma responsável.

A COVID19 mostrou algo muito importante até agora: sem colaboração tudo será mais difícil. Portanto, a única forma de sairmos dessa é aprendendo a cooperar.

(*) Kelson Douglas, Diretor criativo da I Love Pixel, fundador do Valin, o vale de inovação de Mariana e Ouro Preto, embaixador do Montreal International e lider local do Startup Weekend e da IxDA, a associação mundial de design de interação

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