Se “não” me diz respeito, eu lavo as mãos

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “editoriais”

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A imagem de um homem imobilizando uma mulher no chão com o pé no pescoço dela causou em mim grande desconforto. Quando este mesmo homem colocou o peso de todo o seu corpo no pescoço dessa mesma mulher, tirando um dos pés do chão, senti indignação e tristeza. A cena a que me refiro é de um policial em ação, resolvendo uma situação de conflito. O país é Brasil e o fato se deu em 2020.

Sobre esse acontecimento não consigo simplesmente entendê-lo como um fato isolado, pois bem sabemos que todos os dias, nesse país, há centenas de pessoas com o pé de alguém no próprio pescoço. O problema é que se a ação não me afeta diretamente, parece não ser algo com o qual eu deva me preocupar, e é aí que está a questão, pois, na verdade, isso me diz respeito, sim. Isso diz respeito a todos.

Historicamente, o colonizador já chegou aqui colocando o pé no pescoço dos indígenas. Insatisfeito, arrastou os negros africanos para torná-los escravos. Logo, podemos dizer que faz mais de 500 anos, no Brasil, que há sempre alguém colocando o pé onde quer e como bem entende. No entanto, por mais que determinadas ações pareçam absurdas, é necessário dizer ainda que há legitimação da violência no meio social, e isso acontece direta e indiretamente. Ela pode ocorrer de forma direta, quando há manifestação explícita de apoio à ação, e de forma indireta, quando somos omissos, lavando as nossas mãos diante de atitudes que deveriam ser imediatamente rechaçadas tão logo elas aconteçam.

Vale chamar a atenção também para as narrativas que se perpetuam inclusive nas escolas, com o apagamento quase total de negros e pobres como protagonistas da nossa história e cultura, para entender melhor como a legitimação de ações vis se dá no país. Somos o último a ter abolido a escravidão, chegando ao final do século XIX com uma parcela da população contrária ao direito de liberdade dos negros. Salienta-se ainda que a assinatura da lei Áurea não garantiu nenhum direito efetivo a eles, estando, portanto, cada um largado à própria sorte. Nomes como Zumbi dos Palmares, Chico Rei, Dandara, Aleijadinho, Teresa de Benguela, Mestre Valentin, Cruz e Sousa, Maria Firmina dos Reis, Luís Gama, Francisco José do Nascimento, Lima Barreto, Mãe Menininha do Gantois, Pixinguinha e Carolina Maria de Jesus, por exemplo, são pouco celebrados até hoje, porque ousaram resistir de alguma maneira à opressão, ocupando lugares que só cabiam aos brancos.

Machado de Assis, fundador da Academia Brasileira de Letras, é visto por muitos como branco. É bem interessante buscar por capas de livros desse período, para ver como as ilustrações eram feitas bem ao gosto burguês. Sendo assim, um escritor ser representado com a pele mais clara não era de se estranhar. E é bem provável também que muitos leitores daquela época não tenham entendido o quão sagaz foi esse escritor. Basta lermos, por exemplo, os contos “O caso da vara” e “Pai contra mãe”, com o mínimo de atenção, para observarmos a representação de uma sociedade com atitudes escancaradamente hipócritas e racistas. Recado dado para um bom leitor.

Em linhas gerais, fato é que até hoje pouco espaço é dado à população negra e pobre nesse país. A manutenção do trabalho servil é destinada a eles, e, nesse sentido, é ainda uma afronta atores negros que se destacam na TV, jornalistas que ocupam a bancada de um importante jornal, todos os meninos e meninas, jovens estudantes e trabalhadores que saem diariamente de suas casas e mostram a sua existência. Melhor dizendo: RESISTÊNCIA. Isso porque, num país com práticas tão fortemente racistas, ser negro é resistir todos os dias. É lutar a cada hora para não ter a liberdade interrompida com um pé no pescoço. E se ainda for suspeito de um crime: dois pesos e duas medidas.

Portanto, não seria exagero dizer que é, por vezes, difícil acreditar em um país justo, quando ele mesmo assiste de braços cruzados à humilhação de pessoas que, por causa da cor da pele e/ou da classe social, são subjugadas diariamente para a manutenção de uma violência estrutural, garantindo assim a ordem mesquinha das coisas.

(*) Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana, publicado em 24/07/2020 no site da Agência Primaz (https://www.agenciaprimaz.com.br)

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