Céu despido de estrelas

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Céu despido de estrelas nesta noite fria, seca, pálida. Cobre-me a pele, cobertores e meias de lã. Neblina esvoaçante toma conta da montanha recortada. Meu olhar embaçado pela neblina não consegue compreender o que é perder cem mil vidas. Cem mil vidas quitadas por uma única causa? Barulho ensurdecedor de gritos e lamentos, ouço da caixa de som da TV quebrada. Estrelas apagadas recontam-se diariamente. Na soma dos que já foram, quantos mais se curvarão à pandemia?

Todo dia junto-me às lágrimas dos que choram e dos que não choram mais. Pularam do décimo andar pela orfandade. Um par de olhos apagados pelo mal extraordinário. Pernas caminham por ruas e vielas estreitas, ressuscitando normalidade que não existe mais. Aglomerada festa com cantoria, gritos, batidas musicais de caixas de som e bebedeira. Ruas cheias, pontos de ônibus lotados, passantes sem máscaras andam despreocupadamente. Quê caos medonho! Isto não é uma gripe que se evapora! Nenhum dobre e lamento de sino embala nossos ouvidos. Cientistas, pais de santo e curandeiros atravessam noites em busca da fórmula. Agonizo elucubrações sobre infertilidades em períodos de lua cheia. Que raio obscuro camufla este céu luzidio? Agonizam meus sonhos: ir e vir, ir e vir. Céu tomado de treva; ipê amarelo resiste no jardim morto;  máquinas virulentas açoitam chão da praça; triste fim da camélia. Idoso chora abandono, criança entediada libera birra; depressão engrossada por isolamento estendido.

Lisura na política é caminho permeado por dissimuladas subjetividades. Que sedução escatológica atrai poderes à corrupção e à parcialidade? O orvalho se evapora de quatro em quatro anos. Enervam-me os ânimos quando a fertilidade se esvai junto com a aurora. Meus olhos cambaleantes acariciam o vento gelado e cortante. Indefiro novas solicitações de amizade e socialização. Vivo tempos trevosos na consciência e no autocuidado com espada empunhada. Afundam-se no caos do inferno medonho tardes seduzidas por tertúlias presenciais. Movimento na rodovia: caminhões, ônibus e ambulâncias.

Dia se tinge de cinza escuro. Meus ouvidos andam cansados, mesmo assim, ponho-me a escutar uma tal de Nina, que revela amarguras do seu cotidiano. “Afundo-me nas trevas da depressão e do abandono. Consumo carboidratos, nicotina e antidepressivos em excesso…” Indico Clarice para Nina enfrentar a solidão do isolamento.

Rezo entre brumas e trevas: salve, rainha, mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve! Choro por cem mil almas. Choro, com meus olhos cansados, de segunda a segunda, o silêncio cortante das vidas quitadas de crianças, jovens, adolescentes e idosos; a camélia que morreu, a ação virulenta das máquinas que açoitam o chão da praça, o vitimismo cego de Nina.

Choro e me afundo no céu despido de estrelas nesta noite fria e pálida, sem nenhum dobre e lamento de sino, para embalar meus sonhos molhados…

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