O início do uso do termo Vigilância Epidemiológica se encontra nos conceitos de isolamento e quarentena dos séculos XVII e XVIII. Ligado a esse conceito apareceram nessa época os hospitais de isolamento para varíola, tuberculose e lepra. Esse tipo de visão epidemiológica estava intimamente ligado à Medicina Clinica e Teoria do Contágio. Em contraposição à Teoria do Contágio havia a Teoria do Anticontágio a qual foi muito importante até 1848. A Teoria do Anticontágio, da qual nasce a Medicina chamada do “Estado”, “Urbana” e da “Força de Trabalho”, possuía duas alas, a dos liberais e dos radicais.
Os liberais, que por princípios se opunham à quarentena e as medidas burocráticas do Estado que limitavam a livre empresa, propunham reformas ambientais para erradicar as enfermidades. Essa posição atribuía às enfermidades a condição primariamente biológica: o miasma, que eram emanações que vinham pelo ar, e traziam as doenças. Dessa posição é que vai nascer a Polícia Médica na Alemanha do século XVIII, a qual sofreu modificações na França e na Inglaterra, originando a Medicina “Urbana” e da “Força de Trabalho” respectivamente nesses dois países no limiar do século XIX.
A Medicina Urbana na França defendia uma prática epidemiológica originada no medo das epidemias urbanas, e como resultado surge a quarentena, que não é outra coisa se não um sistema de vigilância generalizado que dividia e controlava o recinto urbano, dirigida ao controle do espaço e não dos indivíduos, donde surge o conceito de Higiene Pública e mais tarde o de Salubridade. Na Inglaterra se estabelece um sistema de alarme para detectar oportunamente as pestes, e que desse aviso oportuno às classes ricas para que abandonassem as cidades. Os radicais em troca viam a enfermidade (e os miasmas) como produzidas por condições sociais cada vez mais amplas: a pobreza, a desigualdade social, a desnutrição e a opressão criadas pelo nascente capitalismo”.
De 1848 em diante como conseqüência da Revolução Industrial e do nascimento da Teoria dos Germes em 1870, ressurgiu vitoriosa e com novos argumentos a Teoria do Contágio. No final do século XIX e inicio do século XX, as epidemias aparecem relacionadas, inicialmente, à expansão imperialista das potências Europeias e dos Estados Unidos nos países do Terceiro Mundo.
Na América Latina a marcha imperialista ocorre em dois momentos. A primeira quando a América Latina é um grande porto exportador de matérias primas, sendo que interessava a limitação da peste e epidemias. Por isso a epidemiologia e a saúde pública centraram as atitudes na quarentena, no isolamento, na implantação do Regulamento Sanitário Internacional. A segunda etapa começa quando os capitais se radicam no interior dos países para o cultivo da cana de açúcar, algodão e banana. Surgem as empresas e a necessidade de aumentar a produtividade. É então quando aparecem as grandes lutas por erradicação de enfermidades endêmicas, como a malária, dentre outras. Em 1955, o Centro de Controle de Enfermidades dos EUA (CDC) propõe, um sistema de vigilância que compreende a recoleção sistemática dos dados relacionados com a presença de uma enfermidade específica na época, a poliomielite, a análise e interpretação da mesma e a distribuição da informação processada às pessoas que tem como função atuar no controle da mesma. O termo Vigilância nesse momento se aplica mais aos indivíduos visando descobrir os sinais precoces de infecção, do que as enfermidades. Não implica em limitar a liberdade das pessoas como no caso do isolamento e quarentena.
Em 1964, a Organização Mundial de Saúde aprova a extensão da vigilância a enfermidades transmissíveis de importância internacional, e em 1965 estabelece em Genebra um Serviço de Vigilância. Em 1969, o Regulamento Sanitário Internacional estimula a aplicação dos modernos princípios epidemiológicos baseados na Vigilância Epidemiológica, trocando as ações defensivas dependentes da quarentena, por ações de ataque baseados na eliminação de focos e no desenvolvimento de serviços de saúde, capazes de descobrir oportunamente as infecções vindas de fora do país e evitar que essas se estabeleçam. Três são as enfermidades objeto deste regulamento: cólera, febre amarela e varíola.
Na América Latina se começa a falar de Vigilância Epidemiológica na década de 70, 15 anos depois do CDC fazer esta proposta para os EUA, com o desenho teórico dos sistemas de vigilância acompanhando o desenvolvimento dos Programas de Extensão de Cobertura e Atenção Primária.
Independente da corrente de pensamento epidemiológico, a atuação da vigilância nas epidemias depende da classificação das mesmas. Elas se classificam em Epidemia por Fonte Comum ou Propagada. A primeira pressupõe a contaminação a partir de uma fonte comum como no caso das epidemias de doenças transmitidas a partir da água, tendo como exemplo a febre tifoide e a hepatite A. Dentre as epidemias propagadas, temos as epidemias contraídas a partir de um vetor, como no caso da transmissão do dengue e da febre amarela pelo mosquito Aedes aegpti, e como no caso da febre maculosa por carrapatos, e a epidemia propagada pessoa a pessoa que ocorre nas viroses de transmissão respiratórias como agora no caso do coronavírus. Nesse ultimo tipo de epidemia, para seu controle faz-se necessário que a cadeia de transmissão seja interrompida pelo uso de uma vacina, que venha a promover o que se chama de imunidade de rebanho, ou mesmo por um isolamento tipo a quarentena que faz com que se crie uma barreira, rompendo o elo de transmissão entre as pessoas.
O que torna a epidemia por coronavírus peculiar, baseia-se nos fatos de não existir ainda uma vacina para essa doença, e por ela surgir de forma explosiva, com a ocorrência de muitos casos ao mesmo tempo, não permitindo que o Sistema de Saúde consiga fazer o diagnostico dos mesmos em tempo hábil de trata-los, e dispensar o cuidado necessário aos mesmos.Nesse caso a taxa de letalidade que mede a gravidade e o risco de se morrer por uma doença, passa a ser diretamente proporcional a capacidade de se tratar os doentes. Logo se impõe aqui novamente o isolamento e a quarentena dos indivíduos.
Para se promover uma ação de bloqueio em uma doença como o sarampo, uma virose com forte componente respiratório de infecção, faz-se necessário se obter uma conversão sorológica de pelo menos 80% dos indivíduos, seja através da vacinação ou pela própria doença, obtendo-se assim a chamada imunidade de rebanho. Esse mesmo percentual, ou algo pouco menor em torno de 70%, seria necessário para se deter a atual epidemia de coronavírus em qualquer parte do planeta, através da conversão sorológica pela doença, já que como já dissemos ainda não temos uma vacina eficaz disponível para essa doença. No entanto não existe esse percentual de pessoas jovens e saudáveis em qualquer pais do mundo, e seguramente no caso do coronavírus não apenas os jovens seriam infectados. Alem do mais, muitos jovens têm problemas sérios de saúde, sendo que alguns deles mesmo aparentemente sadios tem adquirido a doença sem uma explicação ate agora pertinente, e apresentado quadros graves pela mesma, como pode ser visto recentemente no Brasil e em países que passaram pela epidemia.
Logo, o isolamento vertical proposto para as faixas de idade mais avançadas e para determinados grupos de risco, por aqueles que estão mais preocupados com os rumos da economia, não encontram sustentação teórica e pratica na epidemiologia, podendo nos levar a perdas não restituíveis, ou seja vidas humanas. Isso nos faz lembrar da velha discussão entre liberais e radicais do inicio do século XIX colocada no inicio desse texto, em que os primeiros mais preocupados com a livre empresa e o nascente capitalismo, criam a teoria miasmática, a qual não encontrou sustentação com o avanço da ciência e das novas concepções metodológicas e filosóficas da época.
Conclui-se que a atual pandemia de coronavirose no Brasil e em outras partes do mundo, tem de ser enfrentada com velhas e novas armas da epidemiologia, sendo que o aparelhamento da Vigilância Epidemiológica através de novas técnicas de detecção sorológica e de Biologia Molecular como o PCR para o diagnostico precoce dos casos, sequenciamento genético da cepa de vírus circulante, e rastreamento imediato dos contatos, impõe-se como imediato e fundamental. Velhas medidas que remontam ao Higieneismo e a Polícia Médica como a quarentena e isolamento dos indivíduos são igualmente fundamentais no momento, embora as barreiras sanitárias na entrada e em pontos de cidades no Brasil que visem a detecção de possíveis sintomáticos sejam altamente questionáveis, já que um percentual importante da transmissão pode ocorrer através de pacientes assintomáticos o oligossintomáticos. Daí a não ser pelo aspecto de diminuir a circulação das pessoas, a utilização de profissionais de saúde nessas barreiras, se justifica apenas no caso de esclarecimento sobre a doença e das medidas que estão sendo tomadas para o controle da mesma.
* Márcio Antônio Moreira Galvão é Médico Sanitarista (UFMG); Professor Titular aposentado (UFOP); Mestre em Epidemiologia (FIOCRUZ); Doutor em Medicina Tropical (UFMG), com pós-doutoramento na Universidade do Texas (Estados Unidos); ex-Secretário de Saúde dos municípios de Ouro Preto e Mariana; ex-Diretor dos Laboratórios de Saúde Pública da Funed; ex-Diretor da Escola de Farmácia e Medicina da Ufop.