O discurso monocórdico e a cultura do povo mineiro

Temos consciência de que não temos o direito de dizer o que nos apetece, que não podemos falar de tudo em qualquer circunstância, que quem quer que seja, finalmente, não pode falar do que quer que seja (Michel Foucault).

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “editoriais”

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Cada sociedade ou comunidade tem sua própria diversidade cultural, mas a história, apesar de ser moldada de acordo com os respectivos costumes, é contada pelos detentores de poder.

Em Minas Gerais foram construídas estruturas de poder discursivo que impõem a naturalização e a aceitação do modelo econômico minerário. Há uma tolerância e, mais, um incentivo explícito, mesmo à margem da ética e da lei, à ampliação da mineração no território do estado. Um modelo econômico que irradia poderes políticos e culturais. É a vocação de Minas e dá empregos, o que se diz.

Tal é a dominância da cultura da mineração que é praticamente inexistente um movimento ambientalista nas cidades tomadas por essa atividade econômica. Quando existem, são oriundos ou assessórios de direitos sociais, e não puramente ambientais, como associações de bairros ou de prática de esportes radicais. Em Mariana, por exemplo, não se pode associar dano socioambiental às mineradoras. São intocáveis.

Mal sabemos nós que o dito desenvolvimento sustentável não é sinônimo de oferta de empregos e subempregos, de geração de receitas e de pagamento de impostos, de publicação de propagandas e slogans sentimentais.

O desenvolvimento sustentável constitui-se em ser ecologicamente correto (meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações), economicamente viável (sob o ponto de vista da economia pública e não da privada), socialmente justo (vida digna) e culturalmente diverso (diversidade cultural) sob o manto da ética socioambiental.

A diversidade cultural, especificamente, pode ser identificada a partir da interpretação dos diversos significados e símbolos historicamente impostos por aqueles que dominaram a cultura mineira.

Que se faça uma comparação: o órgão Arp Schnitger tem mais valor que uma viola caipira? A igreja barroca é mais valiosa que a casa de taipa ou pau a pique?

Não foi sem razão a incursão de um dos (senão o) mais prestigiados escritores brasileiros, o mineiro geraizeiro Guimarães Rosa, que relatou a vida nas Gerais, do vaqueiro, do povo sofrido detentor de uma cultura singular não advinda da mineração. Carlos Drummond de Andrade, o poeta mineiro geraizeiro, já fora de Itabira, sua cidade natal, expressou duras palavras contra aquela atividade que, sob o discurso do desenvolvimento, deixou apenas buracos e um retrato na parede.

Há um deslumbre nas regiões minerárias pela valorização da cultura estrangeira, arraigada e sedimentada pelo poder econômico dominante.

No início do mês, li o artigo de um colega advogado, defensor de mineradora da região de Mariana, numa prestigiosa revista eletrônica jurídica. Nesse artigo, após fazer uma análise do orgulho de estrangeiros sobre nomes e símbolos associados à mineração e utilizados por agremiações esportivas em outros países, concluiu temer que, em razão da imagem negativa da mineração no Brasil, o estado de Minas Gerais passe a se chamar apenas Gerais.

A analisar a conduta e o modelo minerário das empresas que o colega defende, pode-se imaginar, sim, a alteração dos nomes do estado e das nossas cidades. Mariana, quiçá, poderá se chamar Samarco. Ou Renova, que é mais juvenil. Brumadinho poderia ser Vale. Itabirito, Gerdau.

Grande parte da história de Minas Gerais está atrelada ao conto dos mineradores, ao discurso monocórdico e à cultura da mineração.

Só os mineradores têm história? Conhecemos Fernão Dias, Cláudio Manoel da Costa, Marquês de Pombal e Barão de Eschewege. Não conhecemos os queimados no Campo Grande de Ouro Preto nem os antigos moradores do Gogô de Mariana. Eles não têm nomes e sequer têm túmulos. Aliás, além de Marília, Chica da Silva e Ismália, existiam mulheres em Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX? Nossos netos saberão quem foram os moradores de Bento Rodrigues e de Córrego do Feijão? Suas histórias de luta e de dor?

O passado não deve ser alterado, mas que seja ressignificado com a visão crítica daqueles que não tiveram a oportunidade de contar a história.

(*) Bernardo Campomizzi Machado é advogado especialista em Direito Ambiental e Minerário

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