Acolhedoras jornadas diárias das primaveras

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “editoriais”

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É primavera

e eu tento catar flores:

ao vento

nas areias do deserto

nas profundezas dos esgotos,

para acalentar minha alma

despetalada

e iluminar olhos sem vida.

É primavera

e eu caço numa estirada

flores nos quatro cantos de minas,

nas cidades de minas

nas campinas de minas

nos montes de minas

nos muros de minas,

nas aberturas das pedras

e das rochas de minas.

Outras estações se despedem

e eu ainda continuo

procurando flores…

Dia 22 de setembro de 2020, dez e trinta da manhã, horário de Brasília, teve início a primavera. E essa chegada foi brindada com chuva, depois de longa estiagem e umidade relativa do ar bem abaixo do tolerável. Ar polinizado e temperatura amena, dá vontade de dormir, sem ter hora para acordar; ou de ficar acordado sem ter hora para dormir. Comida de domingo na casa de mãe; jogar baralho com familiares. Ler posts de mídias sociais ou livros de qualquer gênero é prato predileto em dias de chuva. Os pensamentos ficam ensolarados. Escrever transpondo infertilidade temática e nuvens só para ter sobre o colchão de nuvens a iluminação plena. Ouvir poemas declamados por alunos; ser parado por leitor na rua comentado trechos de seu livro. Andar sem rumo por avenidas; acomodando-se no banco da praça para sentir o aroma de flores primaveris; degustar churros quentes; sentir algodão doce derretendo na boca, ou o canudo recheado de sorvete. Retornar à cidade em que viveu na infância; encontrar velhos amigos; professora do primeiro ano, contemporâneos de seu pai jogando dominó no banco da praça. Arroz caríssimo ao alto brinda triunfal saída de noiva da matriz. Inevitável mergulho no lago da saudade em banho de cheiro de… não volta mais; enquanto flores multicoloridas em canteiros sinalizam o presente. Sensação de ter alta sem complicação pós-cirúrgica. Pardais madrugam. Mais tempo sem fazer nada. Som de música clássica soa de algum lampejo de bom gosto. Compromissos agendados aguardam conexão; a vida encapsulada por fibra ótica. Milagre do vidro volátil. Miragem é nota de duzentos reais esquecida no bolso do blazer pendurado no cabideiro. Alguém posta oferta de delivery de bombons caseiros. Dançar na chuva é musical do passado; a dança da chuva pode pôr fim ao fogaréu no Pantanal ou na Amazônia. O Rio, desgovernado. Lamento a impotência diante da inoperância legal.  

As coisas boas têm cheiro especial, se eternizam por si mesmas, feito o perfume das flores que atraem colibris nas acolhedoras jornadas diárias das primaveras.

(*) Andreia Donadon Leal é Mestre em Literatura pela UFV e autora de 16 livros; Membro efetivo da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais e Presidente da ALACIB-Mariana

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