Sítio arqueológico em Antônio Pereira está ameaçado por estrada da Vale
Historiador explica que resquícios da Fazenda dos Pitangui ajudam a entender a história de Ouro Preto como local de trabalho além do turismo religioso
- Marcelo Sena
- 08/10/2020 às 12:10
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Enquanto a estrada da Vale avança sobre a região de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto, um sítio arqueológico com ruínas do século XVIII pode estar ameaçado pelas obras da mineradora. Em caráter emergencial, a estrada está sendo aberta em meio à vegetação nativa, sobrepõe cursos d’água que abastecem o distrito e passa próxima às ruínas históricas da Fazenda dos Pitangui. Para entender a importância desse sítio arqueológico ainda inexplorado para a história de Minas Gerais, a Agência Primaz conversou com Tércio Veloso, doutor em História pela UFOP, com pesquisas voltadas para a ocupação do espaço na região de Ouro Preto no século XVIII.
“Arqueologia não é, necessariamente, desenterrar múmia no Egito”. Esse foi um dos recursos didáticos utilizados pelo professor Tércio Veloso para defender iniciativas e estudos arqueológicos de catalogação nas ruínas da Fazenda dos Pitangui, localizada em Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto.
Com tese sobre a ocupação do espaço em Ouro Preto no século XVIII, o pesquisador analisou as fotos enviadas pela Agência Primaz e deu indícios do que um trabalho aprofundado nas ruínas poderia revelar. Na entrevista, Tércio comentou a importância de se preservar o patrimônio contido nas ruínas e defendeu o local como vestígio de uma memória pouco explorada de Ouro Preto sendo, desde seu surgimento, um local de trabalho, para além das igrejas barrocas seculares.
A crise enfrentada pelos moradores de Antônio Pereira é acompanhada pela Agência Primaz desde o início de agosto. Entre violações de direitos humanos, reclamação de falta de diálogo com a comunidade e incertezas quanto ao processo de remoção das famílias atingidas pela mancha da Barragem de Doutor por determinação judicial, a construção de uma estrada pela mineradora Vale, em regime de emergência, preocupa a comissão de atingidos.
Além das ameaças às nascentes, a captação de água da região e espécies de flora protegidas por lei, com riscos de extinção, um verdadeiro sítio arqueológico pode ser profundamente impactado pelas obras da estrada. Entre cavidades, cavernas e túneis, as ruínas da Fazenda dos Pitangui estão há poucos metros das obras e estão sendo chamadas pelos moradores de Antônio Pereira de “Machu-Picchu de Ouro Preto”.
Ruínas de uma unidade de produção mista do século XVIII
“Com certeza são de uma fazenda que a gente chama de unidades de produção mista. Elas são destinadas à habitação, à criação de animais, a plantações. Isso está diretamente ligado ao sustento da população que abrigou aí, afinal de contas não se come ouro. Você extrai ouro mas precisa se alimentar todos os dias”. (Tércio Veloso)
De acordo com o pesquisador Tércio Veloso, o tipo de construção encontrado nas ruínas indica que ela foi levantada ainda no século XVIII. “O que me parece indicar que são ruínas do século XVIII é exatamente a técnica construtiva. São, basicamente, ruínas de pedra e barro. Era feita uma argamassa com as coisas do solo e essa pedra, chamada de pedra de canga, que tem essa coloração muito característica e está presente em toda a região de Ouro Preto e Mariana. No século XIX há uma utilização muito mais ampla de olaria, ou seja, tijolo de barro”.
Ao ver as fotos tiradas pela Agência Primaz no local, Tércio explica que aquela não é uma construção isolada na região. “Essas ruínas são muito parecidas com o que existe em áreas de Mariana e Ouro Preto que acabaram sendo abandonadas. Principalmente áreas de alto de morro, que eram áreas destinadas à mineração. Eu conheço ruínas muito parecidas com essas entre Mariana e Camargos. A gente encontra dessas ruínas de mineração na Serra do Veloso, em Ouro Preto, na Serra do Ouro Preto mesmo e acompanhando todo esse acidente de relevo que são as serras, o Morro Santo Antônio em Passagem de Mariana e liga com o Gogô (Morro Santana), que eram exatamente onde aconteciam os serviços minerários”.
Tércio explica ainda que, por serem mais afastadas dos centros históricos, as ruínas da fazenda dos Pitangui podem indicar qual era a finalidade do local. “A gente tem uma dificuldade na história de Minas Gerais de entender Ouro Preto como uma cidade de trabalho. Essas ruínas, por serem mais afastadas, com certeza são de uma fazenda que a gente chama de unidades de produção mista. Elas são destinadas à habitação, à criação de animais, a plantações. Isso está diretamente ligado ao sustento da população que abrigou aí, afinal de contas não se come ouro. Você extrai ouro mas precisa se alimentar todos os dias”.
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Catalogar, investigar, preservar
“As ruínas são importantes para a gente ter uma visão da região de Ouro Preto como um espaço destinado ao trabalho. É esse tipo de patrimônio, de memória que faltam ser levantados sobre essa região”. (Tércio Veloso)
Como primeiro passo para a preservação do local, o historiador defende um trabalho robusto de arqueologia. “É possível fazer arqueologia de tudo. Não é, necessariamente, destinada a desenterrar múmia no Egito. Eu acho que um trabalho de arqueologia ali naquela região seria essencial nesse momento. A primeira coisa é entender exatamente o que é aquilo. Seria um levantamento das estruturas, não estou falando de escavação total, mas já sendo um trabalho de arqueologia. Um passo seguinte seria, tendo essa maior clareza, um trabalho envolvendo mais historiadores que é descobrir quem foram os proprietários e tentar cruzar a história dessa fazenda com a história do distrito e de Ouro Preto.”
O pesquisador também esclarece porque essas ruínas são importantes para acionar memórias pouco exploradas de Ouro Preto. “As ruínas são importantes para a gente ter uma visão da região de Ouro Preto como um espaço destinado ao trabalho. É esse tipo de patrimônio, de memória que faltam ser levantados sobre essa região. Qual é o fundamento pedagógico de uma visita a Ouro Preto hoje, se eu pegar meus alunos da escola aqui e levá-los para Ouro Preto? São as igrejas. Só que Ouro Preto não era uma cidade religiosa. A finalidade de Ouro Preto não é ser uma cidade religiosa. Aquelas igrejas estão ali porque as pessoas que habitavam construíram, mas Ouro Preto é fundamentalmente um espaço de trabalho. É um espaço de mineração, de comércio, onde as pessoas precisam se virar para se sustentarem, porque o ouro não se come”.
“Ouro Preto não é uma cidade que foi construída para as pessoas irem lá rezar. É destinada ao trabalho, onde as pessoas estão se fixando e as igrejas representam um desses esforços de fixação. Uma outra parte desses esforços é a produção de alimento. ” (Tércio Veloso)
O historiador defende ainda que é impossível existir mineração, sem que a região também comece a produzir o que precisa para sobreviver. “Na historiografia, até a década de 1970 se imaginava que a única coisa que Ouro Preto produzia era ouro. Mas isso não é bem assim. Não dá para esperar vir do Rio de Janeiro, ou de outro lugar, tudo o que a cidade precisa consumir. Essa produção agrícola é muito difícil de mensurar por ser voltada ao sustento diário, mas ela está dentro de Ouro Preto, nas fazendas próximas. Eu percebi isso quando fui pegando os registros de terrenos do final do século XVIII e vi pessoas pedindo explicitamente para a Câmara, um pedaço de terra para fazer uma horta, uma pocilga, um quintal”.
“Antes da fundação da Vila, Mariana foi abandonada duas vezes, em 1698 e em 1702. O Antônio Pereira foi um dos poucos caras que ficou. Em Cultura e Opulência do Brasil, o [José] Antonil escreve sobre esse início da mineração, de pessoas que morriam de fome com pepitas de ouro no bolso. Então, a própria mineração só é possível quando as pessoas começam a produzir alimentos ali. Porque comer é três vezes por dia, todos os dias”, finaliza Tércio Veloso, que tem graduação, mestrado e doutorado pela UFOP e é professor de História em Boa Esperança, Minas Gerais.
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