Irmão Fontoura, entre os eucaliptos
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“A hora é virgiliana. Um vento manso vem dos campos em flor.”
(Augusto Frederico Schmidt, ”Soneto”, in “Estrela Solitária”.)
“De madrugada saíamos pelas chapadas brancas, no frescor das
auras impregnadas do cheiro do sertão. O sol amanhecia no
perfume dos umbuzeiros.”
(Gilberto Amado, “História da Minha Infância”.)
Magro, de estatura meã, cabelos brancos, paletó escuro e calças cinzentas com discretas listras pretas, bem aparado bigode, creio que sempre de gravata escura – assim era a clássica figura do irmão salesiano Joaquim Salomé Maria Fontoura, gaúcho de Bagé. Quando eu o conheci, suponho que estivesse na casa dos setenta anos. Eu tinha dez, que completei em 30 de dezembro de 1952.
Estamos no ano de 1953, no Colégio Dom Bosco, em Cachoeira do Campo, MG. Fui estudar interno naquele tradicional educandário salesiano, por sugestão do meu querido tio materno José Carlos Motta, que ali fora aluno em meados da década de 1930. Dirigia a Casa o padre Mário Forestan, italiano de compleição forte, bem- hum orado, risonho como um bondoso pároco de aldeia, que, muitos anos depois, morreria num desastre de automóvel.
Os padres salesianos, em sua maioria italianos, eram auxiliados pelos irmãos da mesma Ordem de São Francisco de Sales, de Dom Bosco.Esses irmãos, alguns italianos (como Fra Remigio, roupeiro e poeta místico), a maioria de brasileiros, ajudavam em vários setores. Na Rouparia, Fra Remigio. Na Farmácia, Sr. Geraldino Silva. No setor de Festas e Eventos, Sr. Fontoura. Em que setor trabalhava o Sr. Fábio, já idoso? Quem detinha o controle logístico do imenso Refeitório? Que irmão seria o responsável pelos três grandes Dormitórios, para Menores, Médios e Maiores? O setor de Esportes devia ter um irmão encarregado (tínhamos três campos de futebol, entre grandes eucaliptos, área um pouco retirada do prédio principal).
Entre os padres, dois, já bem idosos, tinham sido alunos do próprio Dom Bosco, em Turim (Torino). Eram os padres Braz Muzzo (sempre arrimado na sua bengala) e Francisco Zai, já praticamente aposentados. Mas um deles (ou os dois, se revezando) ficava montando guarda na Portaria, numa cadeira certamente confortável. Os dois já tinham dobrado o cabo dos novent‘anos e já quase podiam tocar a Face do Senhor…
O prédio, de uma cor que misturava o amarelo ao ocre, era educandário desde 1895, uma doação do Governo de Minas à Ordem dos Salesianos de Dom Bosco, dispostos a operar na educação no Estado que tinha o velho Colégio do Caraça como um de seus galardões. Mas, antes, aquele edifício fora o Quartel dos Dragões de Cavalaria, que tinha na sua tropa o bravo alferes Joaquim José da Silva Xavier, que passaria à História como o icônico herói da Inconfidência Mineira, o Tiradentes, enforcado no Rio de Janeiro, em 1792, depois de traído por Silvério dos Reis.
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No trem de ferro (ou maria-fumaça) do tempo, voltemos a 1953. No meio de uma floresta de perfumosos eucaliptos, lá no alto, o colégio, que atraía alunos de outros Estados. Tive colegas baianos, um alagoano, um matogrossense, um gaúcho. Certamente os tive de outras regiões do Brasil, agora já me falha a memória, sem chá ou café com madeleines…
Vivíamos em meio a um imenso bosque de eucaliptos. Era forte e aprazível o olor daquelas altas árvores. Os eucaliptos contêm alcatrão, eu iria saber mais de seis décadas depois, por ensinança do escritor argentino Roberto Arlt, na crônica “Amor no Parque Rivadávia”, de seu livro “Águas-Fortes Portenhas e Águas-Fortes Cariocas” (Ed. Iluminuras, pág. 52).
Lembro-me do padre Baeta, gordo e bonachão, irmão do bispo auxiliar de Mariana, Dom Daniel Tavares Baeta Neves. Havia um padre iugoslavo. Clérigos, a caminho do sacerdócio, cuidavam da disciplina dos inquietos alunos, que usavam fardas de cor cáqui, ao estilo militar, com grandes botões pretos e bolsos largos.
O regime era severo, meio espartano. Alvorada, com sineta, às 5 horas – o regente do dormitório anunciava: “Benedicamus Domino!”, ao que os alunos respondiam “Deo gratias!” Missa diária, em latim, na capela. Aulas. Almoço às 10 horas ou 10 h 30, não me lembro bem. Aulas. Jantar às 17 horas, muitas vezes em silêncio, quando um superior (a hierarquia era rígida) lia em voz alta textos edificantes. Estudo. Orações da noite, na capela. Café com leite e pão sem manteiga, como no café da manhã. Dormitório, com silêncio absoluto, como numa abadia.
Chuveirada fria, instalações sanitárias sem vasos. Vigilância total o tempo todo. Meio seminário, meio quartel.
Algumas quintas-feiras (não sei mais se todas) eram reservadas a passeios pelas redondezas. Uma espécie de descanso do batente rigoroso, um pic-nic pelos campos. Podia-se conversar à vontade. Nós, da Divisão dos Menores, estávamos recém-saídos da infância, mas ainda mergulhados nos seus vestígios. Aqueles passeios, para mim, eram como uma volta às fazendas dos amigos de meus pais: Sr. Nico Mol e D. Ninita (casal sem filhos), a viúva D. Zinha Mol Rôlla, o Sr. Bilu de Castro e senhora.
As manhãs campestres em torno do colégio, nessas abençoadas quintas-feiras. A graça da Natureza, o olor dos eucaliptos e das flores silvestres, entres pássaros canoros. Nos riachos, a procura de pequenos topázios. Centenas de pés de viçosos caquis, que só podíamos comer com os olhos. Depois, o almoço campal para a fome das 11 horas. O resto do dia era para a arrumação dos dormitórios e roupas, estudo, orações da noite na capela e sono pesado.
Periodicamente aparecia o velho e amável padre Alcides Lana, o visitador da companhia. Era recebido com tapete vermelho, música e cantorias, como um enviado do Vaticano, um núncio papal. Merecia as homenagens. O rancho dos alunos melhorava um pouco, naqueles dias: talvez até uma boa macarronada com frango, quem sabe um lombo de porco com farofa? Quem sabe até uns milagrosos torresmos?
Em algumas noites de domingo, no salão de cinema, rodava-se um velho filme em preto-e-branco, que a gente via chupando balas, compradas à entrada, a preços módicos. Cada aluno levava sua lata. Um desses filmes se intitulava “Cartago” (foi a primeira vez que tive contato com o general Aníbal Barca e as Guerras Púnicas). Um outro filme foi a aterrorizante história do velho sacerdote Jean-Marie Baptiste Vianney, o cura d’Ars, futuro santo da Igreja, lutando contra as tentações do Demônio, que, furioso, o atormentava. Trilha sonora assustadora, de soturno castelo de Drácula, na Transilvânia cheia de pântanos e névoas. Não era filme para meninos de 10, 11, 12 anos. Naquela noite, no dormitório, custou-me dormir, de tanto medo. O banheiro ficava distante e com aquela meia-luz sombria, fantasmagórica. Lembrava-me das horrendas gargalhadas do Tinhoso. Ouvia-se, ao longe, o vento forte batendo nos eucaliptos. Maldito Malino! O martírio imposto por Belzebu se prolongou por várias noites.
Mas, nessa história que se alonga, onde foi parar o simpático irmão Fontoura? Por certo trabalhava na sua pequena oficina, na parte frontal do prédio. Em que trabalhava o operoso Sr. Fontoura?
Esse veterano servidor de Deus devia ter sido hábil artesão nos seus pagos do Sul. Fazia bandeirolas, pinturas, armações para festas, estandartes, peças de decoração para datas especiais do calendário litúrgico, como o dia 24 de maio, consagrado a Nossa Senhora Auxiliadora, padroeira da congregação. Nós o ajudávamos no trabalho manual, nas poucas horas vagas de uma rígida agenda de orações, refeições, estudo e recreio. Era mais que uma figura paternal, já na casa dos setent’ anos. Parecia um avô, feliz no meio da netaiada que não teve. Meu avô materno, Pedro, morreu em 1928. Do paterno, Carlos, falecido em 1947, não tenho qualquer lembrança, embora ele morasse em Mariana, num velho sobrado do século XVIII, depois posto abaixo. Bem-humorado, o Sr. Fontoura acabou sendo, para o menino de 10 anos, uma espécie de avô virtual. Era educado, afável e espirituoso. Dele me lembro com saudade. Por volta de 1968, em Belo Horizonte, soube, com muito pesar, de sua morte. Não pude segurar as lágrimas, como uma última homenagem a esse bondoso avô não-biológico, com quem convivi em 1953 e 1954.
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Alguns colegas daquela época se lembram de figuras, fatos, casos cômicos e tristes daquele casarão no alto do morro, na estrada que vai de Mariana- Ouro Preto para Belo Horizonte, naquele tempo – antes de JK –ainda sem asfalto. Entre eles, meus conterrâneos Cândido Firmo de Godoy (morador de Brasília), Brazinho Silame, Ronaldo Marques da Silva (no Rio), Jam e Sérgio Nahim, Antônio Geraldo Mol Rôlla. (O saudoso Jorginho Marques da Silva também levou lembranças daquele tempo.) Um dos nossos colegas era o Geraldo Starling Soares Júnior, cujo pai integrava o Governo de Juscelino Kubitschek em Minas. Certamente se lembram, ainda que vagamente, do velho irmão salesiano, gaúcho de Bagé, sim, senhor, tchê!
Mas invoco aqui o testemunho de um ex-aluno mais antigo que nós, ninguém menos que o grande cronista e poeta Paulo Mendes Campos (1922 – 1991).
Na sua crônica “Pecado e Virtude” (está no volume “Quadrante”), temos este quadro:
“A cena é de 1935, o cenário é o pátio do Colégio Dom Bosco, em Cachoeira do Campo. Seis horas da noite. Um menino do segundo ano desce as escadas de madeira da enfermaria e dirige-se à sala de estudos, caminhando sob as arcadas. No silêncio lunar do antigo quartel dos dragões delirei ouve-se um barulho de água jorrando. Uma das bicas do pátio foi esquecida aberta. O menino vai até lá, fecha a torneira, distingue, vindo em direção oposta, os vultos do padre diretor e do professor Fontoura, sobe para a sala de estudo, abre o livro, entra na sua solidão.
Depois das duas horas de estudo da noite havia reza na capela, com bênção do Santíssimo ou não, seguida de pequena prática edificante, chamada “o boa-noite.”
A rotina do tempo do magnífico poeta e cronista (nascido em Belo Horizonte) continuou no meu tempo. O inesquecível irmão Fontoura já não lecionava, mas estava ali firme, no seu trabalho de artesão. Lá, naquele casarão que, durante décadas, passou a ser o seu lar, talvez numa manhã de maio, perfumada pelo olor dos eucaliptos, ou no sossego de uma noite de setembro, depois da bênção do Santíssimo Sacramento, na capela, com canto gregoriano, o irmão salesiano Joaquim Salomé Maria Fontoura entregou a bem-aventurada alma a Deus Nosso Senhor.