A ilusão perdida
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Quatro pessoas. O dia começa na penumbra da madrugada. A Mãe faz muito tempo que acorda sem a ajuda do despertador, um pequeno aparelho de cor apagada, remendado com uma cola emprestada do único vizinho. Todos dormem no mesmo cômodo. Dois parentes ajudaram na mudança, depois de construírem às pressas um barraco. O lugar é de difícil acesso, mas foi o jeito de conseguir um teto, porque ela se recusou a morar debaixo do viaduto. Na televisão da mercearia em que trabalha, vê as notícias sobre uma doença que se alastra, e teme vê-la chegar ao Brasil. O patrão diz que é bobagem acreditar no jornalista. Invencionice para enganar o povo. Sem ter o que fazer, ela continua a sua rotina árdua. Segue com medo, mas, todos os dias, enfrenta a fila à espera de um único ônibus que passa às cinco horas da manhã. Depois, o metrô e uma caminhada de quinze minutos. Leva um lencinho no bolso para limpar o suor. Quer causar boa impressão ao patrão exigente.
No domingo, descansa do trajeto. De pé, às seis da manhã, lava as roupas da casa, limpa o chão, deixa a moradia aberta para receber o sol. Os filhos acordam com a cantoria da Mãe. O mais velho entrega o saldo da semana, recebido pelo trabalho como ajudante de pedreiro. A escola é a obrigação do outro filho. A menina, que não tem dez anos completos, fica na casa de uma mulher conhecida, para quem a Mãe já fez faxina por um tempo. Ela não sabe bem o que acontece durante o dia da criança. Quando chega em casa, vê a filha dormindo na cama improvisada. Mas, a cada domingo, percebe certa tristeza brotando nos olhos dela. Pensou, então, em economizar mais com os gastos essenciais. Talvez, se tirasse o macarrão do domingo, ficando com as sobras da semana, colocaria a menina na mesma escola em que o irmão estuda. Improvisa um fogão no quintal, para não ter de comprar o gás. Longas noites pensando. Arrisca uma conversa com o patrão. Ele resmunga alguma coisa, e ela entende que não terá o dinheiro para a condução da menina.
O almoço do domingo continua a ser o único momento em que a felicidade abraça aquelas quatro pessoas. E uma esperança danada chega até o filho que ainda pode estudar. Muitas vezes não há professores o suficiente para cobrir todas as matérias, mas ele insiste. Remenda as lacunas com a leitura de livros descartados pela moça do almoxarifado, porque, sem biblioteca, o material mais velho entulha o quartinho no qual são guardados utensílios da limpeza e até os itens para a merenda dos alunos. O melhor da turma. Não falta às aulas. A letra é bem miúda para economizar as folhas do caderno. Em casa, quando os estudos se misturam com a noite alta, ilumina os livros com a vela que deixa perto da cama. No entanto, a doença chega ao país. A escola fecha. No portão, um comunicado para as famílias. Fica estudando em casa. As primeiras apostilas são pagas pelo irmão mais velho. No segundo semestre, a mãe, num esforço enorme, quita as demais. Quem sabe tudo se resolva logo!
Embora todos tentassem se cuidar, com o agravamento da pandemia, o pressentimento de algo ruim passou a embalar as noites da família. Chegou o dia em que o mais velho não teve trabalho. Em seguida, o desemprego da Mãe. O patrão fechou a mercearia e voltou para a cidade de origem. A comida escasseando. Foi tentar a ajuda do governo. Alegrou-se com a possibilidade de aguentar mais uns meses. Adoeceu. Tomou um chá no primeiro dia. Sinais de gripe. Nada demais. Choveu na semana. Pegou sereno. O corpo pesou. Não saiu mais da cama. O irmão mais velho pediu ajuda e levou-a ao hospital. Intubação. Ao chefe interino da casa, coube sair para arranjar o sustento. Começou a vender máscaras nas ruas. Os metrôs ainda ficavam lotados: “Quem não precisaria de uma máscara para se proteger?”
No fim de cada dia, a ausência da Mãe. Fim das férias e o filho não pôde mais comprar nenhuma apostila. Impossível o estudo remoto. Agora, cuidava da casa e da irmã. Adora Matemática, mas sua habilidade para cálculo passou a servir apenas para contabilizar o saldo negativo dos potes de comida. Improvisam, diariamente, uma refeição. Inventam soluções. Logo a Mãe estará de volta. Alguém falou de vacina também. O fim. Do hospital, o corpo embrulhado foi colocado numa vala comum. Difícil entender o sentido das coisas.
O jeito é conseguir a ajuda do governo. Ninguém vê? O chefe da casa é apenas um menino de 16 anos. Vai se virando como pode. Alguns bicos pela rua. Vê gente se aglomerando. Topa com um grupo se divertindo na noite. A clandestinidade revela ao adolescente que a sua dor não é ouvida. “Será que o mundo enlouqueceu?”, é o que consegue pensar. Insiste em sobreviver. Pensa nos irmãos. Alguns trocados enganam a fome que teima rondar a casa. Resiste mais um dia. E mais outro. Senta-se na calçada. Esgotado, chora. O irmão quer ser alguém. E a menina? O que será de uma criança crescendo sem a mãe? O terror transpassa o seu corpo. É preciso vencer mais um dia. Uma solução imediata qualquer. Corre. Já não vê mais ninguém. Ouve gritos. Corre mais. Os sons se misturam. Um estampido. Com os olhos embaçados, faz grande esforço e distingue a cor vermelha que escorre no asfalto. Não entende o que estão dizendo na roda que se faz em torno de si, mas ainda consegue pensar que em casa talvez haja um pote que não esteja totalmente vazio.