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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Cenas Cotidianas

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Foto: Shutterstock/Anna Fedorova_it

Há imagens diluídas entre os passantes, viventes e sobreviventes. Pesquisas apontam que alguns sentimentos estão cada vez mais aflorados, como a insegurança, a indiferença, o medo e a raiva. Efeitos da pandemia!? Os dias se arrastam à espera de uma normalidade que não chega. Na internet, entre discursos polarizados, dicas de como reorganizar a rotina e aproveitar os dias de isolamento social. No noticiário, o gráfico da morte segue ascendente. Na rua, o mundo explode.

Olhos à mostra e sorrisos escondidos. Olhos inflamados e bocas que gritam. Pessoas se acotovelam. Na esquina, um homem vende máscara, enquanto outro ri da esposa que escolhe uma para comprar. Diz que é bobagem gastar dinheiro assim. Dá um sorriso largo e exibe os dentes. “Essa coisa de máscara é só desculpa para manter o povo alienado”. O marido tece considerações a respeito da invencionice brasileira sobre o uso da máscara. Faz um sinal com as mãos e aponta para umas pessoas que se ajeitam debaixo de uma marquise. “Entende o que digo? Que doença seletiva é essa?”, pergunta o cara. Paga a máscara e segue com a mulher.

Mais adiante, dois rapazes, atentos, observam um grupo que reivindica ações imediatas para o controle da doença. Entram num bar e ficam deliberando. “Esses baderneiros não têm o que fazer numa segunda-feira?”, questiona um deles, aumentando o tom da voz, como se desejasse a participação do garçom, que despeja um pouco de aguardente no copo. O outro ri, bate no ombro do amigo e joga a máscara no balcão. O funcionário tenta dizer alguma coisa, mas desiste. O fluxo de gente tem aumentado um pouco no fim da tarde, e não quer confusão, principalmente, por estar sozinho no estabelecimento. A garrafa fica à disposição dos dois fregueses. Do lado de fora, o som do grupo está cada vez mais acalorado.

Ao mesmo tempo, sons das lojas disputam os transeuntes. É preciso não deixar a mercadoria encalhar. Promoções atrativas podem minimizar os prejuízos do último ano. Menos atendentes e currículos na gaveta. Das portas, criatividade e anúncios improvisados, com entrada controlada de clientes para evitar aglomeração. A mulher quer entrar em uma delas, mas o marido é impedido por estar sem máscara. Ela fica sem graça e lembra que poderia ter comprado uma para ele, minutos antes. A dona da loja se preocupa, porque não seria bom chamar a atenção da guarda. Vai se aproximando, e olha para a atendente. A moça deseja muito manter o emprego, agindo com prontidão. Tudo sob controle.

Com um dia de mais movimento, cria-se a expectativa de uma semana produtiva. A moça fica esperançosa de vencer o contrato de experiência na sexta. A proprietária sai um pouco mais cedo, mas, antes, deixa algumas orientações para as duas funcionárias. Enquanto a atendente mais velha fecha o caixa, a novata tenta conter a entrada de um rapaz sorridente. Ele diz que é aniversário da namorada e que não pode deixar de levar um presente naquele dia. “É uma noite especial”. Insiste mais uma vez. “Não posso fazer nada. Há um cara na esquina vendendo máscaras. É só você ter uma, que a gente segura mais uns minutos a loja aberta”. O casal que estava terminando a compra fica um pouco apreensivo. O rapaz se agita e questiona a presença do homem que está na porta. A atendente tenta explicar. A esposa começa a dizer que o marido não estava dentro da loja, mas percebe um sinal de reprovação. Desiste. Aproxima-se devagar, para passar pela porta. Fora dali, pode ser que veja a guarda. É só avisar.

Os sons da rua se misturam, e somente a mulher do caixa ouve os gritos da colega que é arrastada para a calçada. O rapaz tem os olhos inflamados e de sua boca espumam palavrões. A moça cai, mas o seu braço continua preso nas mãos do seu algoz. As outras portas se fecham. A garrafa de aguardente voa entre os passantes e acerta uma criança. O grupo reunido se dispersa em várias direções no meio da confusão. E, entre gritos e esbarrões, a jovem sente seu braço ser dilacerado. Talvez seja como indicam algumas pesquisas: reações negativas em decorrência do prolongamento da pandemia. Os sentimentos estão mais aflorados. Mas, pode ser que outra doença também esteja em alta no país. Neste caso, ainda pior, pois é um mal que não se controla com máscara e vacina.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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