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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O valor do rótulo

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Na fila do caixa, a mãe, sem sucesso, tenta acalmar a criança. O menino está agitado e começa a chamar a atenção de quem vai engrossando a fila. Ela, sem graça, sussurra alguma coisa, olha para a atendente e põe o filho no chão. Em instantes, a visão da criança é tomada por uma diversidade de cores, e, instantaneamente, puxa um pacote transparente com balinhas macias e coloridas. Ágil, a mãe percebe o perigo da situação, e faz de tudo para disfarçar o seu constrangimento. Por ela, não teria saído acompanhada, mas não havia uma pessoa de casa para a compra necessária. Respira fundo e pensa: “nem um saquinho de balas”. A fila se inquieta com olhares de reprovação. Retira o dinheiro tímido do bolso, paga os itens selecionados, e sai sem olhar para trás, com o pequeno agarrado em seus braços. Os gritos do filho sufocam os gritos surdos da mãe.
Há momentos em que ela não consegue entender as razões desses olhares que rasgam a sua dignidade. “O que há de errado com a gente?”, questiona a si mesma, enquanto vê a criança brincando no quintal de chão de terra. Mais de uma vez ouviu das patroas alguma reprimenda sobre o filho atrapalhando a faxina da casa. Sem marido, sem família na cidade, não pode confiar em quem não conhece bem. Além disso, perto do seu barraco, há tantas histórias semelhantes que, às vezes, o que ouve, nas horas de descanso, são ecos da sua própria experiência. Um lugar de iguais. Triste lugar de iguais. Não pode exigir do outro ajuda com o seu herdeiro de dificuldades. Como pôde gerar vida para um mundo sobre o qual não tem o menor controle? Pensamentos enevoados. A vizinha conta do sobrinho que foi recrutado pelo tráfico, e agora cumpre anos de cadeia. Ninguém quer saber da mãe paralítica, dos valores de remédios, do preço da fome. Teme pela falta de futuro do filho. Respira fundo. Olha para o quintal. Ama tanto que se arrepende de ter gerado uma vida.
Quando as sirenes tocam, sufoca a criança em seu peito magro. Em dias assim, passa as noites enrolada num cobertor, deitada no chão. Diz que é dia de brincar de esconder. Aponta para o lugar mais seguro do barraco, um canto entre a cama e a parede, e, juntos, se misturam na escuridão. Longe da porta e das duas janelas, tenta driblar possíveis balas que procuram corpos distraídos. Sente que as horas custam mais a passar, como se, propositalmente, os ponteiros do pequeno despertador teimassem em permanecer imóveis. O alívio só chega, quando amanhece. Vai trabalhar e piadinhas sobre uma noite de farra atingem a sua face que escancara a noite mal dormida. “Não vai arrumar outro filho, hein!”. É a orientação de quem supostamente sabe das coisas. Todos sabem muito bem das coisas. Se ela também não tivesse nascido, e se tantos outros também não tivessem ousado nascer, as sirenes diminuiriam? Haveria balas doces, coloridas e macias para qualquer criança?
Vai vencendo os dias, ou, quem saberá dizer, vai lutando contra eles, encontrando seus pares nas caras de quem transita pelas ruas, subindo as vielas e becos, de quem carrega mercadorias, de quem sorri para ela e diz que é assim mesmo. Muitas vezes, se reconhece na cara desanimada da mulher que está no ponto de ônibus, de madrugada, à espera do coletivo que vai seguir lotado por duas horas seguidas. E, assim, repetidamente. Como as histórias vão se misturando dentro de ônibus, nas esquinas, pelos becos e vielas, nos mercados? Quem determina os espaços de cada um? Quando a sorte acerta um dos barracos, a criançada fica solta por mais tempo na rua. Os adultos comemoram como se a vitória fosse de todos, como se fosse chegar para todo mundo. E ninguém se importa com a iluminação precária, porque, em dias como esse, até as estrelas colaboram, tornando, brilhantes, os labirintos. É importante que a meninada sinta o cheiro de um dia bom. Superstição, talvez.
Ela sente que é preciso aproveitar os dias de trégua. Vê sua criança aprendendo os primeiros passos da vida. Tem medo do que virá, porque se lembra do garoto que foi reconhecido por um passante de um assalto à mão armada. O menor disse que não sabia de nada. Chorou. Chorou muito. Mostrou a identidade, abriu a mochila para mostrar que vinha da escola, mas não acreditaram. Tinha a cara do bandido. Será que sua pequena criança também tem cara de? Melhor nem completar a frase. Ela repara que ali todos são iguais. O que acontece com um pode acontecer com o outro. Procura pensar numa forma de sair da encruzilhada. Olha para as estrelas. Tão bonitinhas lá no céu. Dias bons deveriam durar mais. Quando o brilho chega aqui já estão mortas? Será? Os pensamentos voltam a ficar enevoados. Agarra o filho, diz a ele que não será assim. Não. Ele não tem cara de coisa alguma. A cara que ele terá será o da sua escolha. Basta. Não admito que seja assim.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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